A dada altura da vida, o existir parece imerso num caldo untuoso que interdita-nos qualquer movimento, dando a sensação de que a realidade deu lugar a uma condição muito específica, como se um sonho, longo, fadigoso, que drena as energias de quem dorme e tenta, em vão, forjar aquelas imagens a seu talante. Ao notar, finalmente, que está encarcerado a memórias de que deveria livrar-se — malgrado jamais possa —; de que sua história até ali, em maior ou menor grau, há de manifestar alguma influência sobre os rumos que toma hoje; de que está a reboque dos desmandos de seu próprio pensamento, no labirinto nebuloso de sua cabeça tão instável, cabe ao homem apenas convencer-se de que viver é mesmo a cornucópia de delírios que lhe parecia desde tenra idade.
Tom Logan, o pistoleiro que conduz “Duelo de Gigantes”, bate-se primeiro consigo próprio para depois afrontar o grande inimigo que o vai perseguir ao longo dos 126 minutos do filme de Arthur Penn (1922-2010), um faroeste com todas as muitas imagens sobre homens imperfeitos ávidos por dar algum rumo a suas vidas. O roteiro de Thomas McGuane e Robert Towne (1934-2024) está sempre flertando com o lado romântico do público, que não tarda a se convencer de que essa é mesmo uma história de amor — o amor como se dá nos faroestes, mas amor de qualquer forma.
Nas clareiras do Missouri, no Centro-Oeste americano, já houve capim-gordura e grama-azul a perder de vista, tudo para alimentar oitenta mil cabeças de gado texano. Numa das tantas fazendas da região, escondiam-se mais de 3.500 volumes de literatura inglesa na biblioteca, mas isso foi num tempo agora saudoso, antes que ladrões descobrissem que poderiam ganhar rios de dinheiro fácil extraviando peças do rebanho de gente como David Braxton, um dos homens mais poderosos do lugar em meados do século 19. Como acontece com outros latifundiários, Braxton agora tem sofrido com invasões a sua propriedade e, segundo ele, de cada cem animais, sete lhe são tirados na calada da noite, sem que as autoridades nunca tomem nenhuma providência.
Mediante uma introdução ágil, Penn apresenta Logan e Braxton, dois personagens antagônicos entre si, mas que, conforme se vai assistir, guardam pontos de contato que independem de sua vontade. Para tentar dar um freio as ações de Logan, o maior ladrão de cavalos do Velho Oeste, Braxton contrata Lee Clayton, um justiceiro implacável, sem medo de cara feia, e então começa a desenhar-se o conflito central, com Jack Nicholson e Marlon Brando (1924-2004) afiados como sempre, este recém-saído de “O Poderoso Chefão” (1972), de Francis Ford Coppola, e “Último Tango em Paris” (1972), de Bernardo Bertolucci (1941-2018), e Nicholson ainda ruminando o gosto do Oscar de Melhor Ator por “Um Estranho no Ninho” (1975), de Miloš Forman (1932-2018), sem dúvida uma das razões de tamanho apelo para o longa de Penn.
Enquanto a batalha de Logan e Clayton não se consuma, o diretor investe no tipo vilanesco de John McLiam (1918-1994). David Braxton é um homem cheio de saborosas contradições, capaz de demorar-se na leitura de “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy” (1759), a bem-humorada sátira social de Laurence Sterne (1713-1768), ao passo que narra para a filha, Jane, suas aventuras nas minas de ouro da Califórnia antes dos dezoito anos, na corrida do Golden Gulch e a incursão pela América do Sul. De uma cena tão despretensiosa, floresce talvez a grande virada do filme. O torto caso de Logan e Jane, traumatizada pelo abandono da mãe, que por não suportar mais o temperamento despótico do marido, fugiu com o primeiro homem “nada razoável” que encontrou, confere alguma leveza a uma trama de amargor, sangue e morte. Kathleen Lloyd contrabalança a dureza de Nicholson num dos filmes mais injustiçados do século 20, decerto por ter claro que todos passamos a vida tentando derrubar os monstros que criamos.
Filme: Duelo de Gigantes
Direção: Arthur Penn
Ano: 1976
Gêneros: Faroeste/Drama
Nota: 9/10