Obra-prima do cinema uruguaio, filme premiado inspirado em uma das histórias mais tristes e desesperadoras do século 20, na Netflix Divulgação / Tornasol Films

Obra-prima do cinema uruguaio, filme premiado inspirado em uma das histórias mais tristes e desesperadoras do século 20, na Netflix

As ditaduras militares que dominaram a América do Sul nas décadas passadas configuraram um período de repressão brutal, em que cada país se destacou por métodos específicos de opressão. No Brasil, a tortura tornou-se uma prática institucionalizada; no Chile, os desaparecimentos forçados assombraram a população; e na Argentina, as execuções extrajudiciais marcaram a história. No Uruguai, o regime militar encarcerou um número significativo de opositores políticos, resultando na maior proporção de prisioneiros per capita em relação à população do país. Entre os detidos, cerca de cem não sobreviveram às condições extremas das prisões.

O filme “Uma Noite de 12 Anos”, na Netflix, dirigido por Álvaro Brechner, é uma adaptação cinematográfica baseada na obra “Memórias do Calabouço”, escrita por Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro, ambos ex-militantes Tupamaros, que compartilham suas experiências de encarceramento durante a ditadura uruguaia. A obra literária, publicada em 1987, narra a dura realidade vivida por Rosencof, Huidobro e José “Pepe” Mujica, que mais tarde se tornaria presidente do Uruguai. Os três foram mantidos em confinamento solitário por 12 anos, sob condições desumanas, movidos constantemente para locais mais isolados e degradantes, na tentativa de quebrar suas resistências mentais e físicas.

Presos em 1972, os três militantes foram submetidos a um isolamento extremo a partir de 1973, como parte de uma estratégia cruel de tortura psicológica perpetrada pelos militares. Separados de suas famílias e isolados do mundo exterior, eles foram tratados como inimigos do estado, levados a enfrentar seus limites em condições de extrema privação. O filme de Brechner captura a intensidade dessa experiência, levando o espectador a mergulhar nas profundezas da mente dos prisioneiros, onde o maior desafio é preservar a sanidade em meio à tortura silenciosa e contínua do isolamento.

A narrativa cinematográfica conduz o público por uma jornada perturbadora, em que as fronteiras entre realidade e delírio se tornam cada vez mais tênues. As cenas revelam o esforço hercúleo dos personagens para não sucumbirem à loucura, mantendo vivo o que resta de sua humanidade. Através de flashbacks e visões, o filme explora as memórias dos prisioneiros, suas lutas internas e a resistência psicológica necessária para suportar as adversidades impostas pelo regime militar.

Ao invés de focar na violência física explícita, Brechner opta por retratar o ambiente opressor das prisões utilizadas na época, destacando a escuridão, a falta de higiene e a solidão que permeiam esses espaços. A ausência de cenas de tortura física explícita não diminui o impacto do filme; ao contrário, intensifica a sensação de desconforto ao explorar a tortura psicológica a que os prisioneiros foram submetidos.

O elenco do filme, liderado por Antonio de la Torre no papel de Mujica, entrega performances que capturam a complexidade emocional dos personagens. Mujica, um guerrilheiro que dedicou sua vida à luta por liberdade e justiça, é retratado como um homem que enfrenta um colapso mental enquanto revive lembranças dolorosas de seu passado. Rosencof, interpretado como um jornalista e poeta afastado de sua família, encontra na imaginação e nas recordações uma forma de resistir à opressão. Huidobro, por sua vez, luta para preservar sua sanidade, revivendo memórias romantizadas com seus entes queridos.

Essa experiência visceral transforma a percepção dos prisioneiros sobre si mesmos, forçando-os a confrontar seus demônios internos e, paradoxalmente, a fortalecer suas identidades. Mujica, Rosencof e Huidobro só foram libertados em 1985, com o fim da ditadura uruguaia. Após a libertação, Mujica e Huidobro seguiram carreiras políticas, sempre mantendo seus ideais socialistas, enquanto Rosencof continuou sua trajetória como jornalista e dramaturgo.

O filme de Brechner não é apenas uma reflexão sobre os horrores da ditadura, mas também um testemunho da resiliência humana diante de condições extremas, revelando a capacidade de resistência e a luta pela preservação da dignidade em meio à opressão.


Filme: Uma Noite de 12 Anos
Direção: Álvaro Brechner
Ano: 2018
Gênero: Biografia/Drama/Policial
Nota: 10