Enquanto alguns chegam, outros partem. Na vida, somos passageiros de nós mesmos

Enquanto alguns chegam, outros partem. Na vida, somos passageiros de nós mesmos

Eu era criança quando fiz minha primeira viagem de trem. Nunca me esqueci do vagão em que fiquei com minha família. Sentada à janela, ia descobrindo como era grande (e diferente!) a vida que passava de cidade em cidade, pelas plantações de cana-de-açúcar e pelo gado nos pastos. Mesmo atenta às cenas a que assistia, também notava o reflexo do meu rosto no vidro que me separava do mundo lá fora.

Viajávamos ao encontro de uma família de amigos que estava comemorando o nascimento de mais um filho. Porém aquele momento, que deveria ser apenas de festa e alegria, também era temperado pela lamentação da morte recente do pai da criança recém-nascida. À medida que chegava o nosso destino, uma mistura de felicidade (eu conheceria o bebê) e medo (também conheceria a morte) tomou conta de mim.

Outro dia, revivi a “viagem de trem”: no mesmo dia em que faleceu a mãe de uma grande amiga, nasceu o filho de uma outra amiga nossa. Dor e euforia dançavam novamente por entre as pessoas perto de mim. Olhei-me no reflexo do vidro da janela do vagão que seguia independente de minhas vontades; e eu estava novamente envolta por pensamentos inquietos e antagônicos.

Ferreira Gullar escreveu um poema para dar voz à composição de Heitor Villa-Lobos (uma música na qual os instrumentos da orquestra imitam o movimento da locomotiva). Ouço a canção em minha mente e recito os versos que atravessam minhas lembranças: “Lá vai o trem com o menino, lá vai a vida a rodar (…), lá vai o trem sem destino, pro dia novo encontrar…”.

Inspirada pelo poeta, percorro os trilhos da minha vida. Apoio a cabeça na janela da minha alma e fico observando tudo que se passa (e o que passou) lá fora. A cada cena que vejo (e revejo), deixo desgostos, desamores e remorsos para trás. Lembro-me de que foi nos períodos mais difíceis da minha vida que aprendi a deixar o que já foi para seguir em frente.

Às vezes essa viagem é calma. Mas tem dias em que a gente descarrilha: perdemos a hora ou a chance, lamentamos por quem se foi e sofremos pelo que não tivemos. Dá vontade de parar o tempo e chorar com calma. Bem devagar. Suspirando. Até a dor passar. Também queremos odiar sem culpa e gritar ao mundo, para depois morrer na miséria das horas que nos consomem.

Porém, a despeito dos nossos piores pesadelos, os trilhos continuam à nossa frente. Precisamos retornar à locomotiva. Precisamos seguir viagem, mesmo com a paisagem incerta, e mesmo com as mágoas que levamos na bagagem. Por isso, prefiro continuar acreditando na frase de Martin Buber: “Todas as jornadas têm destinos secretos que o viajante desconhece”.

Assim, sejamos passageiros que carregam mais do que partidas e chegadas, e mais do que o início e a morte; mas levemos também a vida rodando em esperança e futuro. Então, os olhos refletidos no vidro da janela irão sorrir para nós: estamos aproveitando a viagem!

Rebeca Bedone

é médica.