Filme épico, digno de Oscar, é um dos melhores da história da Netflix, mas 70% dos assinantes não o assistiram Divulgação / Netflix

Filme épico, digno de Oscar, é um dos melhores da história da Netflix, mas 70% dos assinantes não o assistiram

No filme “Legítimo Rei”, que abriu o Festival Internacional de Cinema de Toronto em 2018, o empenho em impressionar é evidente. A produção utiliza amplamente drones para capturar cenas aéreas, o figurino é meticulosamente reproduzido para refletir a moda de setecentos anos atrás, e as cenas de batalha, essenciais em uma obra desse gênero, são coreografadas com precisão.

David Mackenzie, demonstrando seu habitual rigor, apresenta um filme tecnicamente impecável, embora o tema, bastante específico e distante da realidade brasileira, não tenha o mesmo apelo que questões mais universais como a corrupção, a degradação moral, ou o fracasso do sonho americano — temas amplamente explorados em seus trabalhos anteriores, como “A Qualquer Custo” (2016) e “Encarcerado” (2013). Mackenzie é hábil em extrair do elenco performances que elevam a narrativa, transformando eventos aparentemente insignificantes em momentos épicos. Se o público não captar essa intenção, a perda é exclusivamente dele.

Mackenzie aproveita o carisma de seu protagonista para lançar luz sobre a história de Roberto I (1274-1329), o rei da Escócia que liderou uma guerra contra a monarquia inglesa no início do século 14. Chris Pine, no papel de Roberto, encarna com precisão o arquétipo do líder que, com atitudes paternalistas, tenta suprir as necessidades de seu povo — um precursor do populismo que, de certa forma, ressoa até os dias de hoje. A Escócia da época era um território selvagem e mal compreendido, tanto por seus habitantes quanto por seus governantes.

Roberto The Bruce luta por seu reino, mesmo que isso signifique mergulhar o país em um período prolongado de instabilidade, cujas consequências reverberariam por anos, gerando insatisfações entre todas as classes sociais, da nobreza ao camponês mais humilde. A relativa paz social é substituída por uma fervorosa agitação, e “Legítimo Rei” captura esse processo através de uma sequência contínua habilmente executada, que revela traços da personalidade autoritária e machista do monarca escocês.

O filme destaca a rivalidade constante entre Roberto The Bruce e Edward I, o príncipe de Gales interpretado por Billy Howle, ambos em disputa pelo trono escocês e pelo protagonismo da trama. O roteiro, elaborado por Mackenzie e outros quatro roteiristas, posiciona “Legítimo Rei” como um dos filmes com maior número de colaboradores nesse aspecto, superado apenas por “No Coração do Mar” (2013), de Ron Howard, que também buscou apoio em vários autores para dar corpo à narrativa, embora sem grande sucesso.

A dinâmica entre Pine e Howle é marcada por uma troca de papéis ao longo do filme, uma complexidade narrativa que imita a própria vida, onde raramente se encontram vilões absolutos ou heróis impecáveis. Ambos os personagens oscilam entre ser vilões e heróis, entretendo o público e participando de um jogo moral complexo. À medida que a história avança, Roberto The Bruce assume a posição de líder de uma série de guerrilhas contra um império muito mais poderoso, consolidando-se como um herói nacional em uma obra que, inevitavelmente, adota um tom patriótico. O filme, contudo, evita cair em um maniqueísmo simplista, reconhecendo as nuances de cada personagem e situação.

“Legítimo Rei” não foge dos clichês da narrativa do herói que enfrenta um adversário colossal, um tema recorrente desde a antiguidade. No entanto, a produção trata com rigor intelectual as tensões históricas entre escoceses e ingleses, que continuariam a se manifestar séculos depois, como no caso de Mary Stuart, outra figura da realeza escocesa que desafiou a Inglaterra, então sob o governo de Elizabeth I — um evento retratado no filme “Duas Rainhas” (2018), dirigido por Josie Rourke. A história, como sempre, dá voltas surpreendentes, e cerca de trezentos anos após as vitórias de Roberto The Bruce, seu descendente Jaime VI seria coroado rei da Inglaterra, unificando os tronos em uma reviravolta digna dos grandes acontecimentos históricos.

Uma das interpretações possíveis do filme aponta para uma reflexão sobre as monarquias e suas semelhanças com as ditaduras modernas, que, sem o verniz da realeza, são apenas formas disfarçadas de autoritarismo. Roberto The Bruce experimenta isso de forma intensa ao manter-se no poder enquanto sua esposa, Elizabeth de Burgh, é sequestrada pelas tropas inglesas. Florence Pugh, mesmo em uma participação relativamente breve, constrói sua personagem com uma intensidade que amplifica o sofrimento do rei, reforçando o dilema enfrentado por grandes líderes — e, por vezes, por aqueles nem tão grandes assim — ao longo de suas trajetórias. Governar, afinal, é um ato de renúncia sobre-humano, exigindo sacrifícios que poucos estão dispostos a fazer.

Essas narrativas de tempos tão distantes, quando os governantes ainda demonstravam algum respeito por seus súditos, continuam a fascinar o público contemporâneo, embora nem sempre seja fácil para o espectador penetrar a superfície da narrativa e compreender o contexto histórico. Sete séculos após o reinado de Roberto I, a Escócia, apesar de ser uma nação democrática com uma constituição baseada em princípios republicanos, ainda tem uma monarca como chefe de Estado desde 1952, um paralelo que evoca a citação de Giuseppe Tomasi di Lampedusa em “O Leopardo”, onde certas coisas mudam para que tudo permaneça igual.


Filme: Legítimo Rei
Direção: David Mackenzie
Ano: 2018
Gênero: Drama/Ação
Nota: 9/10