A morte tá de brincadeira

A morte tá de brincadeira

Nem todos tinham o privilégio de ser amigos de um coveiro. Rochinha morava em Gueirobas da Serra, um vilarejo que não aparecia nos mapas oficiais da União. Três mil habitantes — se muito — bem contados, de mamando a caducando. Mais indivíduos caducando do que mamando. A maior parte deles, claudicando pelas ruas esburacadas. Ninguém ousava admitir, mas, a população de Gueirobas definhava a olhos vistos. A primeira coisa que uma criança de colo fazia após desmamar das tetas da mãe, após aprender a caminhar com as próprias perninhas, era sumir, era picar a mula, era pegar descendo, era vazar, era dar o fora daquele minúsculo povoado incrustado num pedaço de terra ruim no interior do país.

Após jogar a pá de cal sobre o esquife de pau-bosta de Dona Cotinha, a ex-prefeita da cidade, a multidão dispersou calada, cabisbaixa. Fazia um calor dos diabos no mês oito e um bafo quente, denso, tirava pica-pau do oco, arrancava tatu do buraco. Rochinha ficou para trás para fazer companhia ao Jackson, o coveiro, enquanto ele tocava o carrinho-de-mão com as ferramentas de pedreiro para dentro do almoxarifado. Um suor pegajoso patinava as suas faces vincadas pelo tempo.

Rochinha comentou que já passava da hora de tomarem uma gelada. O experimentado sepultureiro consentiu, pigarreou e cuspiu um catarro cor de tijolo sobre uma moita de bromélias que pelejavam contra o clima árido, inóspito, e que cobriam o túmulo do Soldado Desconhecido que tinha deserdado da Guerra das Guarirobas no ano um mil novecentos e abobrinha. Mais acabrunhado do que o normal, Rochinha lamentou o falecimento da ex-prefeita, uma punheteira egressa dos tempos estudantis gueirobenses, de quem fora cabo eleitoral, amante e doador de sangue. Jackson, o coveiro, sugeriu que estacionassem por um instante sob a sombra de uma frondosa gameleira onde periquitos esfomeados disputavam frutinhas temporãs.

— Rochinha, você sabe que você é o meu melhor amigo, não sabe?

— Ô, Jaques… A retífica é verdadeira

— A recíproca…

— Que seja. Considero você também como o melhor amigo que eu tenho no mundo, Jaques. A gente é como se fosse irmão, alma gema.

— Vou lhe contar uma coisa que eu nunca disse pra ninguém.

— Eita, meu velho, vai com calma, vai devagar, pense bem, cuidado com o que você vai revelar, não me assuste.

— Não é o que você tá pensando, urubu malandro. O assunto é sério. Trabalho aqui faz mais de quarenta anos. Eu já escolhi. Eu já reservei o lugar mais privilegiado deste esplendoroso campo da paz, deste condomínio fechado do qual nenhum morador dessa corrutela vai escapar, eu decidi o cantinho perfeito para sepultar você depois que você morrer.

Rochinha tomou um susto e gargalhou com o comentário esdrúxulo.

— Jaques, fico aliviado que você não vai me enterrar no seu cemitério enquanto eu estiver vivo. Agradeço imensamente.

— Tô falando sério, compadre. Você é o meu melhor amigo e eu lhe devo muita consideração. Enterrar defuntos é o meu forte, desde sempre, cada um tem o seu talento e você sabe muito bem disso. Comecei a cavoucar sepulturas ainda de-menor. Nós dois já passamos dos setenta anos, Rocha. Já fizemos muitas coisas juntos, ninguém há de negar. Se quer saber, na minha opinião, nós dois estamos fazendo hora extra. Pra gente esticar as canelas, não custa, qualquer hora é hora, meu irmão, não tem jeito, não adianta tergiversar. Espero que Deus, na sua misteriosa magnanimidade, me conceda o privilégio de bater com as patacas primeiro do que você. No entretanto, se você fizer a grande travessia antes de mim, eu prometo, eu faço questã de enterrar você no melhor pedaço de terra deste cemitério encantador. Eu escolhi. Eu já escolhi, companheiro. Vai ser bem aqui onde nós estamos. Observe bem e me diga se este não é um lugar precioso. Você vai desfrutar do repouso eterno e merecido sob a sombra dessa árvore centenária, repleta de passarinhos, que foi plantada pelos nossos ancestrais. Eu conheço os caminhos do sol, camarada. Escolhi essa sombra, em particular, para que você não se apoquente com o sol na cara, nem na parte da manhã, nem na parte da tarde. Agora, preste atenção: o melhor de tudo. Que as nossas amadas comadres não nos ouçam. Vou ingressar você no entremeio das irmãs Jorgina e Santina, as putas mais famosas e mais queridas de Gueirobas em todos os tempos. Escolhi essas coordenadas criteriosamente. Coisa de amigo. Coisa de irmão. Espero que você não se sinta incomodado, que não me leve a mal por tocar nesse assunto de morte com você ainda vivo, feliz e saudável. Acontece que ando comovido feito o diabo. Era pra gente ter se lascado há três anos, durante a pandemia do vírus chinês, mas — uh-lá-lá — aqui estamos, sãos e salvos. Sobrevivemos por um milagre. Acho até que a ciência deveria moer os nossos ossos — depois de mortos, obviamente — para fazer vacina e imunizar o planeta. Possuímos uma imunidade diferenciada. Só pode. Isso precisava ser estudado.

Nesse instante, os olhos de Jackson, o coveiro, ficaram inundados de lágrimas.

— Agradeço sinceramente pela sua declaração, Jaques. Mas, por hora, não faço planos de morrer. Como diz o meu genro, eu gozo de uma saúde irritante. Ainda tenho muito querosene pra queimar.

— Eu concordo. Assim seja. É só uma questã de comoçã, de oportunidade, de zelo. Deus lhe proteja e lhe conceda vida longa, irmãozinho. De qualquer forma, fique certo: o seu lugar está garantido e ninguém tasca. A melhor sepultura do cemitério municipal de Gueirobas da Serra será a sua.

— Deus lhe pague, já que eu não vou pagar.

— Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

— Para sempre seja louvado.

— Amém.

— Bora tomar uma breja, Jaques. Esse assunto me deixou com sede.

Saíram do cemitério divertidos e caminharam sob o sol a pino, escaldante, até o Bar da Tonha, onde Jackson, o coveiro, sofreu um colapso fatal, desencarnando que nem um fiapo de carne na ponta de um palito de dentes. Duas mortes no mesmo sábado deixaram o povo desenxabido. Padre Evandro contrariou-se com o imprevisto porque tinha encontro marcado com uma paroquiana da capital. Tomaram-se as providências. Buscaram um coveiro substituto no vilarejo vizinho.

Enquanto ruminava a derradeira resenha que tivera com Jaques, o coveiro, Rochinha concluiu que a palavra tinha mesmo poder e que esse poder tinha revertido contra o seu compadre. Mesmo sem acusar cansaço, Jackson, o coveiro, descansou em paz na sombra da gameleira, sob a algazarra dos passarinhos, entre os túmulos das saudosas irmãs Jorgina e Santina, as prostitutas mais famosas e mais queridas do remoto município de Gueirobas da Serra.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.