Na Netflix: de filme cancelado à melhor comédia romântica dos últimos 4 anos

Na Netflix: de filme cancelado à melhor comédia romântica dos últimos 4 anos

Poucos cineastas na história do cinema foram capazes de capturar, com tamanha sutileza, as inevitáveis reviravoltas do destino como Woody Allen continua a fazer. Aos 88 anos, Allen permanece como a personificação de um mestre artesão, transformando uma ideia bruta em uma obra monumental que se desdobra na tela com uma harmonia técnica inigualável. Seu talento não perdeu o brilho, e sua vasta filmografia segue explorando o papel insignificante do ser humano diante das forças universais que governam a existência — revelando, em última análise, o quão pequeno é o lugar que ocupamos sob o sol.

Essa percepção se torna inevitável em “Um Dia de Chuva em Nova York”, onde uma série de desencontros ao longo de um único dia transforma por completo a vida de um jovem casal. Em aproximadamente 90 minutos, o diretor-roteirista tece referências a grandes figuras do século 20, celebrando a capacidade única de Nova York de unir e separar corações apaixonados. Essa abordagem confere ao filme uma aura de documento vivo de uma era que parece querer eternizar-se — mesmo que Allen, como ninguém, entenda que o melhor que podemos fazer é nos adaptar ao tempo presente.

A ideia das conexões cósmicas — esse vínculo intangível que a humanidade reforça entre si — é explorada de maneira magnífica em filmes como “Um Lindo Dia na Vizinhança” (2019), de Marielle Heller, nas obras de François Truffaut (1932-1984), ou mesmo no próprio “Meia-Noite em Paris” (2011) de Allen, que exemplifica a futilidade de lamentar o tempo perdido. Ainda assim, por mais que sejamos, tragicamente, todos escravos do tempo, esse carrasco que ocasionalmente nos golpeia com a morte, seguimos em frente.

Desde o nascimento, o ser humano se vê em uma batalha inexorável contra um inimigo invencível, seja por dois minutos ou por um século. O tempo, o mais cruel dos algozes, nos permite viver na ilusão de uma felicidade possível, enquanto a verdade é que estamos eternamente condenados a perseguir essa miragem. O mundo, tal qual a caverna de Platão (428 a.C – 348 a.C), é apenas uma projeção das mais íntimas ilusões de cada indivíduo, forjada por nossas variadas idiossincrasias que nos mantêm presos em nossos próprios devaneios.

Em seu 48º filme, Allen explora as frustrações existenciais de Gatsby Welles e Ashleigh Enright, interpretados por Timothée Chalamet e Elle Fanning. Gatsby, uma clara referência ao romance de F. Scott Fitzgerald (1896-1940) publicado em 1925, e ao protagonista-diretor de “Cidadão Kane” (1941), é um jovem burguês, frequentador de uma tradicional universidade nos arredores de Nova York, cujo talento real reside em vencer partidas de pôquer contra quarentões pretensiosos, embolsando com facilidade vinte mil dólares.

Gatsby conheceu Ashleigh durante o intervalo entre as aulas, e a viagem à grande metrópole surge como uma oportunidade para ela entrevistar Roland Pollard, um cineasta preso em uma angústia existencial. Liev Schreiber adiciona uma dose de tragédia às cenas deliciosamente agridoces que definem o filme, assim como Selena Gomez, interpretando Chan, a jovem que cruza o caminho de Gatsby em uma rua do Brooklyn, numa situação típica do estilo de Allen.

Essas interações fazem de “Um Dia de Chuva em Nova York” um conto de fadas pós-moderno, original e absolutamente livre de sentimentalismos, marcado por trocas de casais que também incluem Diego Luna como Francisco Vega, um charmoso sedutor latino que quase leva Ashleigh a um romance desastroso. Embora Allen leve o filme muito além dessas tramas, esse esboço seria suficiente. E, de fato, é o que basta.


Filme: Um Dia de Chuva em Nova York 
Direção: Woody Allen 
Ano: 2019 
Gêneros: Comédia/Romance 
Nota: 9/10