O melhor faroeste moderno dos últimos 5 anos está na Netflix Divulgação / Saban Films

O melhor faroeste moderno dos últimos 5 anos está na Netflix

Um homem leva uma vida sossegada no vilarejo onde reside com sua família, gerenciando uma pequena funerária e exercendo alguns trabalhos como carpinteiro. A rotina serena é sem dúvida o grande benefício de morar em um lugar assim, mas a tranquilidade da comunidade é perturbada com a chegada de um visitante indesejado, que acaba se estabelecendo definitivamente, para o desespero de todos os cidadãos de bem. Quase como por mágica, de um instante para o outro, a paz que reinava por ali é substituída por dias de ânimos exaltados, inquietação espiritual e prazeres fugazes do corpo, resultando em uma realidade caótica que se degrada em tumulto, desordem e morte.

Uma nova ideia de obediência ao Estado se estabelece, enquanto a própria noção de Estado se deteriora, e aqueles que poderiam levantar a voz para exigir que tudo permanecesse como sempre foi, preferem o silêncio, comodamente, covardemente. Essa era a última barreira a ser superada para que se instaurasse definitivamente um regime anárquico, primitivo, onde a lei de talião, olho por olho, dente por dente, prevalecesse até que o vilarejo se tornasse um reino inglório de cegos e desdentados.

A dinâmica entre dois personagens que deveriam se repelir e se odiar é o ponto de partida do diretor irlandês Ivan Kavanagh em “Terra Sem Lei” (2019), um western que explora as muitas contradições humanas em um lugar sem esperança, amaldiçoado pelos desejos mais baixos. Kavanagh se inspira em ninguém menos que Sérgio Leone (1929-1989) em “Por Um Punhado de Dólares” (1964), que, por sua vez, adaptou “Yojimbo” (1961), dirigido por Akira Kurosawa (1910-1998). Assim como na fictícia San Miguel de Leone, o ambiente aqui também se torna pequeno demais para a lei e os interesses obscuros de personagens como o caubói sem nome, vivido por Clint Eastwood, talvez o papel em que ele mais flertou com a zona cinzenta que separa mocinhos de vilões.

É nessa ambiguidade que Eastwood se movia, da mesma forma que o personagem central do filme de Kavanagh, um homem pouco afeito a sutilezas como moral, ética ou decoro — especialmente porque o cenário que o cerca está intimamente ligado a essa realidade de anomia, ainda que nunca se possa justificar a barbárie. Ao contrário do que se vê no clássico italiano, no filme irlandês não há oportunidade para que o anti-herói e o antagonista se tornem amigos, e nisso Kavanagh leva vantagem sobre Leone. Um sinal dos tempos.

Em “Terra Sem Lei”, o aspirante a salvador é Patrick Tate, bem diferente do tipo sagaz que rivalizava com o protagonista de “Por Um Punhado de Dólares”. Emile Hirsch parece ter incorporado o espírito do artesão que interpreta e constrói um personagem repleto de nuances, como se tivesse saído da melhor carpintaria do cinema. Estabelecido há algum tempo em Garlow, ao norte da Trilha da Califórnia, Tate, um irlandês, leva uma vida modesta, mas digna ao lado da esposa francesa Audrey, interpretada por Déborah François, e dos dois filhos, Emma e Thomas, interpretados por Molly McCann e Quinn Topper Marcus.

Os preceitos religiosos, evocados pelos Dez Mandamentos, são mencionados repetidamente pelo reverendo Samuel Pike, interpretado por Danny Webb, que é casado com Maria, uma mulher 25 anos mais jovem, interpretada por Antonia Campbell-Hughes. Ninguém ousa se opor à autoridade de Deus ou dos homens, mas a chegada de um forasteiro, um imigrante como quase todos ali, desfaz a paz de Garlow. Kavanagh começa a construir metáforas interessantes com a introdução de John Cusack no papel de Albert, o Holandês, um bandido notório que começa a ganhar fama nos rincões da América.

Vestido de preto da cabeça aos pés, com um chapéu de abas largas que o distingue dos demais, Albert parece totalmente imune ao ambiente de falsa piedade do qual a cidadela tanto se orgulha — e nisso, lamentavelmente, ele está certo, como vemos na sequência em que, assim como o reverendo Pike, também faz um sermão para a senhora Crabtree, interpretada por Anne Coesens, que vai lhe pedir emprego, mas recusa suas condições. Dedicado a derrubar cada um dos pilares da frágil civilidade daquele canto esquecido dos Estados Unidos de meados do século 19, o personagem de Cusack dissemina sua doutrina às avessas, estabelecendo um prostíbulo ao lado da igreja do reverendo. Ali, no desfecho da história, ele e Tate acertam suas contas, manchando de sangue um Cristo crucificado, escandalizado pelos caminhos tortuosos dos dois, em uma das cenas mais aterrorizantes do cinema contemporâneo.


Filme: Terra Sem Lei
Direção: Ivan Kavanagh
Ano: 2019
Gêneros: Faroeste/Drama
Nota: 9/10