De lavador de pratos a cozinheiro, de cozinheiro a chef. E como chef, arruinar a vida de muita gente — inclusive a de si mesmo. Anthony Bourdain (1956-2018) tinha uma visão cáustica e descontraída sobre como estava se saindo em sua passagem pelo mundo, que, lamentavelmente, acabou da pior maneira. Morgan Neville não retrocede na história de seu biografado o suficiente para que se entenda onde poderia estar a raiz de tamanho automartírio, mas ao longo das duas horas de “Roadrunner: A Film About Anthony Bourdain”, uma investigação criteriosa acerca de boa parte do que esse homem essencialmente descorçoado, um pessimista schopenhaueriano para o bem e para o mal, permitiu que soubéssemos a seu respeito, alcançam-se iluminações de espantosa crueza quanto ao que Bourdain pensava sobre o existir, a finitude, angústias de toda natureza, três assuntos que dominava como poucos. Ao juntar depoimentos ora amenos, ora mordazes e sempre de franqueza quase constrangedora de quem o conheceu, o documentarista presta uma homenagem justa e equilibrada ao temperamento mercurial de um iconoclasta que sabia que brigas comprar, mas comete um erro que Bourdain não lhe perdoaria.
O próprio chef confidencia que o desajuste que pautou sua vida e sua carreira teria começado ao ler “Why Johnny Can’t Read” (1955), de Rudolf Flesch (1911-1986), um guia de leituras “proibidas” para o americano médio. Abria-se para aquele garoto nova-iorquino um amplo leque de possibilidades do que fazer pelas próximas décadas, e ainda que a gastronomia tivesse virado uma paixão avassaladora, com tudo quanto isso pudesse reunir de louvável e diabólico, ele passou ter a certeza de que deveria experimentar muitos sabores para sentir-se minimamente satisfeito. Foi desse modo que, ao fim de mais um expediente no Brasserie Les Halles, restaurante de Manhattan onde se lançou nesse ofício aparentemente sereno, mas perigoso, de profissional da cozinha, enchia páginas sobre os bastidores de seu métier. Publicado em 2000, “Cozinha Confidencial” foi o empurrão que faltava para que Bourdain encarasse outros desafios fora os ditados por panelas e caldeirões em chamas. Entre eles, a televisão.
“A Cook’s Tour” (2002-2003), uma espécie de diário gastronômico por países além do eixo Nova York-Paris-Roma, na Food Network, deu origem a elaborações mais sofisticadas, a exemplo de “Anthony Bourdain: Sem Reservas” (2005-2012), no Travel Channel, e, finalmente, “Anthony Bourdain: Lugares Desconhecidos” (2013-2018), que ele filmou até sua morte. Na atração, pela CNN, o chef assumiu de vez seu lado papa-léguas, a que aliava uma fome por conhecimento e talvez uma sede por justiça social que até então não conseguira demonstrar.
Foi durante as doze temporadas de “Lugares Desconhecidos” que Michael Steed, o diretor do programa, descobriu, por seu turno, um Anthony Bourdain que não fazia que existisse, tímido, reflexivo, angustiado, uma personalidade que inconscientemente mascarava diante das câmeras e que, querendo ou não, contribuiu para sua debacle existencial. Neville confere a seu trabalho um viés ainda mais confessional ao acrescentar trechos de entrevistas de Bourdain para Christiane Amanpour, Anderson Cooper e David Letterman, bem como a participação do chef David Chang, dono do Momofuku, especializado em macarrão instantâneo, falando do colega de profissão e do homem, apaixonado por escritores outsiders como Ernest Hemingway (1899-1961) e rocks antigos, de letras melancólicas e meio doentias.
Tudo poderia terminar muito bem, com a sábia homenagem do artista plástico autodidata David Choe, outro dos tantos amigos de Bourdain, não fosse por um detalhe: muito do que revelou esse sujeito humano, demasiadamente humano, às câmeras de Neville foi criado por inteligência artificial, segundo o próprio diretor reconheceu. Anthony Bourdain, esse homem que amou tanto, feriu muitos outros com todo esse amor, mas sobretudo a si mesmo, não merecia mais esse duro golpe.
Filme: Roadrunner: A Film About Anthony Bourdain
Direção: Morgan Neville
Ano: 2021
Gênero: Documentário
Nota: 7/10