O adeus de William Friedkin ao cinema acaba de estrear na Netflix Divulgação / Showtime Networks

O adeus de William Friedkin ao cinema acaba de estrear na Netflix

“The Caine Mutiny Court-Martial” é uma crítica muito sutil à autoridade por trás de instituições tão sólidas e eticamente austeras quanto a Marinha dos Estados Unidos, mas não só. Em seu último filme, o grande William Friedkin (1935-2023), como fez em reiteradas ocasiões ao longo da carreira brilhante, coloca à prova ideias algo estabelecidas a exemplo de sanidade, loucura, o preço que todos pagamos somente por ousar subir, e amarra tudo isso com a tensão que ele sabia representar como poucos. 

O grande busílis aqui é tentar responder até que ponto subordinados devem obediência a seus chefes, a despeito das circunstâncias e do ambiente, e, o principal, os aspectos extraordinários que ajudam ou perdem um indivíduo em sua escalada de poder. Baseado no romance autobiográfico de Herman Wouk (1915-2019), de 1951, a história surgiu das experiências pessoais de Wouk, combatendo a bordo de dois destróieres durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Vencedor do Prêmio Pulitzer de 1952, o livro torna-se um roteiro detalhado nas mãos de Friedkin, que explora a eterna ânsia do homem por aceitação, vantagens de toda ordem e, claro, superioridade diante de seus iguais em cenas não menos que sublimes.

Em “Uma Breve História da Humanidade” (2011), o historiador Yuval Noah Harari defende que o homo sapiens só subiu tão alto na escala evolutiva graças à capacidade de partilhar informação a respeito dos assuntos mais prosaicos, como os melhores bosques da floresta para se caçar ou que alimentos poderíamos ou não ingerir sem correr o risco de morrermos intoxicados, por exemplo. E esse conhecimento sobre tudo o que existe de relevante, impossível aos outros animais, não seria nada se não viesse acompanhado do aprimoramento da força bruta. Friedkin pode não ter lido Harari, mas, a seu modo, confirma tudo quanto o israelense atesta, indo ainda mais além. Na cena de abertura, um plano geral indica que estamos no Quartel-General Naval dos Estados Unidos, São Francisco, Califórnia, e lá iremos permanecer por todos os 108 minutos de duração. 

Numa trama que tem o mar por pano de fundo, causa certa estranheza que tudo se dê entre as quatro paredes de uma autarquia federal, sentimento que logo cede espaço à natureza densa do enredo. A corte marcial que averigua as razões do motim no Caine, o caça-minas sem rumo em plena Segunda Guerra, opõe o tenente Stephen Maryk e o capitão Philip Francis Queeg, depois que o primeiro toma o comando da embarcação por sentir que Queeg perder o domínio de suas faculdades mentais. Jake Lacy e Kiefer Sutherland duelam em belas fardas escuras, sem sangue, sem sujeira, enquanto a contenda é arbitrada pelo capitão Blakely, de Lance Reddick (1962-2023), também, por uma macabra coincidência, entoando para o seu canto do cisne. 

Com “The Caine Mutiny Court-Martial”, Friedkin quis deixar um recado evidente. Sem ele, conhecido por “O Exorcista” (1973), fica mais difícil instigar-nos a não parar nunca de bater de frente com as regras do mundo, mas é necessário se forçar e permanecer a fazê-lo. Sua ausência grita.


Filme: The Caine Mutiny Court-Martial
Direção: William Friedkin
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Guerra/Thriller
Nota: 9/10