O filme mais esperado pelos assinantes nos últimos 2 anos acaba de estrear na Netflix Divulgação / Focus Features

O filme mais esperado pelos assinantes nos últimos 2 anos acaba de estrear na Netflix

Falar sobre as coisas que se conhece — e, mais importante, que se ama — é o jeito mais certo de ser universal. A máxima, elaborada a partir de “O rio da minha aldeia”, poema do lusitano Fernando Pessoa (1888-1935), publicado em 1946, onze anos depois sua morte, cai como uma luva para definir “Belfast”, registro comovedoramente pessoal da infância de Kenneth Branagh na Irlanda do Norte dos anos 1960, um país em colapso, experimentando as primeiras nuvens de uma tempestade que se estenderia pelas três décadas seguintes. 

Branagh, um dos maiores atores de seu tempo, transmite sem precisar fazer força a inquietude de um garoto de nove anos em meio às mil revoluções por minuto de uma terra drenada pelos conflitos entre protestantes e católicos na capital que empresta o nome a esse primoroso trabalho de reconstituição histórico-afetiva, e nem poderia ser diferente. Buddy, designação um tanto genérica para o personagem central e alter ego do diretor-roteirista, ganha o espectador com relatos não de todo precisos, daí o preto e branco suave da fotografia de Haris Zambarloukos, mas que, aqui e acolá, revestem-se de cores vívidas, feito as memórias que qualquer um pensa guardar a sete chaves em seus baús de ossos, mas que tomam corpo sempre que podem — e, principalmente, quando não podem.

Este é um filme “para quem ficou, para os que partiram, e por todos aqueles que se perderam”, conforme se lê na dedicatória do epílogo. Branagh deixa emergir o que consegue lembrar do verão de 1969, segundo ano dos Troubles, os enfrentamentos de fundo religioso pelo estatuto político da Irlanda do Norte, fonte perene de sofrimento, rancor e destruição. Entre um e outro episódio de “Star Trek” (1966-1969), percebemos, junto com Buddy, que janelas se estilhaçam e portas são arrombadas, enquanto forma-se uma aglomeração nas ruas estreitas de um bairro operário de Belfast. É lá onde vivem Buddy e sua numerosa família, e, aos poucos, o diretor tira daí as minúsculas peças com que erige seu mosaico de tipos encantadores, que vão adquirindo a natureza de parentes que não vemos há muito. 

Além de Buddy, uma composição mágica de Jude Hill, preenchem o espaço Ma e Pa, a mãe e o pai interpretados pela dublinense Caitríona Balfe e Jamie Dornan, um norte-irlandês que, a exemplo de quase todos, têm de sair de seu rincão para ganhar o mundo. A propósito de Dornan, outra coisa que fascina em “Belfast” é seu amadurecimento profissional. Christian Gray, o estereotipadíssimo galã da série “Cinquenta Tons de Cinza” (2015-2018), sai de cena de uma vez por todas para obrigar que o ator encare desafios como este, algo semelhante a seu desempenho em “O Cerco de Jadotville” (2016), de Richie Smyth. Testemunhar uma evolução dessa magnitude é de encher os olhos.

Um produto cultural deste século que ainda pode contar com Judi Dench e Ciarán Hinds, os avós de Buddy/Branagh, nem precisaria empenhar tanto capricho nas cenas em que as hordas de protestantes invadem os lares católicos. Dench, amiga do diretor, com quem viveu o casamento algo etéreo de Anne Hathaway (1556-1623) e William Shakespeare (1564-1616) em “A Pura Verdade” (2018), louva sua independência, o que se verifica também ao longo dos 98 minutos, que deslizam como uma nascente de água pura. Nascido protestante, Branagh reconhece o horror de trinta anos de insegurança, de pânico, de morte, para todos. Mais que uma lírica profissão de crença na humanidade, “Belfast” é um manifesto contra a ignorância, venha de onde vier.


Filme: Belfast 
Direção: Kenneth Branagh 
Ano: 2021
Gêneros: Drama/Coming-of-age 
Nota: 9/10