Em “Ameaça Dupla”, Shane Stanley aplica ao pé da letra a máxima do “quanto pior, melhor”. Uma faz-tudo de loja de conveniência que começa a ser perseguida por mafiosos não é só alguém inconformado com o próprio desajuste num mundo que o menospreza e o esmaga, tentando entender-se consigo mesmo, equalizar seus ruídos, passar por cima de medos. Isso torna-se suficientemente claro logo na primeira cena, porém assim mesmo é preciso olhos treinados para decifrar suas misérias enquanto não começam a pipocar as urgências que levam-na a atravessar os invencíveis areais de solidão, disfarçados de autonomia. O roteiro de CJ Walley não vai tão fundo nos dilemas psicológicos de Natasha, essa figura ambivalente incorporada com charme diabólico por Danielle C. Ryan, mas fica cada vez mais nítida sua intenção de explorar imagens que soem passar batidas em histórias como esta.
Depois do entrevero na loja, Natasha escapa em companhia de Jimmy, o cliente que viaja até a Costa Oeste para aspergir as cinzas do irmão numa praia da Califórnia na velha caminhonete que fora do morto — pouco antes, ele se limitava a observar um tipo meio sujo babar enquanto a moça se debruçava sobre uma prateleira para alcançar o saco de pão de forma mais fresco. Não demora, e o estabelecimento se enche de figuras entre sinistras e patéticas, chefiadas por Ask, que ganhou o apelido por ser a “desatadora de nós” oficial da quadrilha.
Depois de uma apresentação um tanto pálida, a vilã de Dawn Olivieri cresce no segundo ato, e enquanto isso, Natasha também vai colocando as asinhas de fora, explicando a Jimmy, seu novo e involuntário parceiro de fuga, que, como qualquer um já supusera, 1) aquele empório perdido em algum quilômetro de uma rodovia deserta é a fachada para um esquema milionário de lavagem de dinheiro, e 2) ela está sujeita a constantes e bruscas alterações de humor, efeito do transtorno de múltiplas personalidades, mudando em segundos de Nat, sua versão doce e até pueril, para Tasha, a bandidona inconsequente que enfrenta os mandachuvas do crime organizado sem papas na língua.
Na iminência do desfecho, entra na narrativa Ellis, o noivo de Tasha, um dos tais chefões da máfia, e boa parte da caos de “Ameaça Dupla” se desfaz — antes tarde do que mais tarde. Os homens do filme, Kevin Joy e Matthew Lawrence, um dos filhos de Robin Williams (1951-2014) em “Uma Babá Quase Perfeita” (1993), o cult de Chris Columbus, são, cada qual a seu modo, títeres dessa mulher tão fragmentada quanto esperta. Ela não sabe para onde vai, mas parece a dona do mundo, deixando um rastro de corações partidos. Os nossos, inclusive.
Filme: Ameaça Dupla
Direção: Shane Stanley
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 7/10