O testamento de Franz Kafka

O testamento de Franz Kafka

Tcheco que escrevia em alemão, Franz Kafka recitava para os amigos alguns de seus escritos. De acordo com Max Brod, era uma maravilha. Kafka recitava “sua própria prosa com ardor cativante, com ritmo cuja vivacidade ator nenhum é capaz de atingir”, conta Max Brod. Quem não daria a alma para ouvir a voz de Kafka, mesmo sem entender alemão?

Max Brod, como todos sabem, é o amigo que, tendo sido solicitado a queimar os manuscritos de Kafka, decidiu, pelo contrário, publicá-los. O que leitores de todo o mundo agradecem, penhoradamente. Afinal, nossas mentes foram “acesas” pela grande literatura do, digamos, Rimbaud da prosa.

Testamento, de Kafka  (Ex Machina/Raphus Press, 148 páginas, tradução de Felipe Vale da Silva e Gustavo de Carvalho)

Kafka deixou dois pequenos testamentos para Max Brod. Ambos podem ser lidos no livro “Testamento” (Ex Machina/Raphus Press, 148 páginas), de Kafka (e outros). A tradução é de Felipe Vale da Silva e Gustavo de Carvalho, autores de comentários esclarecedores.

Organizado por Bruno Costa e Felipe Vale da Silva, o livro é um diamante para o cérebro e para os sentidos. Tomara que não passe despercebido num país que aprecia a obra do escritor tcheco que escrevia no alemão de Goethe, Heine e Rilke.

Há textos (cartas, contos, trechos dos diários, belos desenhos) de Kafka e de Max Brod e um excelente posfácio de Felipe Vale da Silva. “Discurso sobre a língua iídiche”, escrito por Kafka, é interessantíssimo. Todo o material é fartamente comentado, de maneira didática e competente, pelos tradutores.

Kafka é autor de obras incontornáveis, como “A Metamorfose”, “O Processo”, “O Castelo”, “Um Artista da Fome”, “Carta ao Pai”. Todas traduzidas com mestria por Modesto Carone para a Editora Companhia das Letras (Marcelo Backes traduziu “O Processo” e “Carta ao Pai” para a L&PM).

Os dois testamentos de Franz Kafka

No primeiro testamento, de 1921, de apenas algumas linhas, Kafka é enfático — “Caro Max, meu pedido final: tudo o que se encontra em meu espólio, (…), em termos de diários, manuscritos, cartas, desenhos, queime-o por completo e sem lê-lo, assim como tudo o que houver de material escrito ou ilustrado que você ou outros tenham”.

No segundo testamento, de 29 de novembro de 1922, Kafka reafirma o que havia dito antes a Max Brod: “Tudo deve ser queimado, sem exceção; peço que o faça o mais rápido possível”. O escritor frisa que os cadernos em posse de Milena Pollak (née Jesenská) deveriam ser recolhidos e queimados, assim como as cartas para Felice Bauer.

Os dois testamentos, divulgados por Max Brod, “consistem na primeira publicação póstuma kafkiana”, relatam Felipe Vale e Gustavo de Carvalho. No texto “O espólio de Franz Kafka”, Max Brod diz que o escritor às vezes se sentia “um tanto alegre com sua escrita”, mas a descrevia “como mero ‘rabisco’”.

Em 1921, Kafka disse o seguinte a Max Brod: “Meu testamento será bem simples; o pedido para que você queime tudo”. O amigo respondeu: “Se você realmente espera algo assim de mim, digo agora mesmo que não atenderei ao seu pedido”.

Muito do que Kafka escreveu se perdeu, porque ele mesmo se encarregou de queimar manuscritos. O relato de Max Brod: “Infelizmente, Franz Kafka tornou-se o executor de parte de seu próprio legado. Encontrei dez grandes cadernos [em formato] in-quarto em seu apartamento — somente as capas, o miolo tendo sido destruído por completo. Ele também (de acordo com relatos confiáveis) queimou diversos blocos de anotações”.

“Quantas não foram as obras que, para minha amarga decepção, não se puderam mais encontrar no apartamento de Kafka; obras que meu amigo leu para mim ou pelo menos o fez parcialmente, ou então sobre cujo projeto me contou”, disse Max Brod.

Numa nota de rodapé, os tradutores registram que “Dora Diamant, a última namorada de Kafka, relata ter incinerado alguns de seus cadernos a seu pedido. (…) Também preferiu manter consigo as cartas que Kafka lhe havia enviado”.

Max Brod dedicou sua vida — era uma missão — a publicar e divulgar a obra de Kafka, como os romances “América”, “O Processo” e “O Castelo”. Os nazistas invadiram a Tchecoslováquia, em 1939, e o judeu Max Brod e sua mulher escaparam para a Palestina — levando o espólio de Kafka.

O escritor “era pouco conhecido” — quinze anos depois de sua morte. “Até então, Kafka era somente o autor de ‘Contemplação’ (poemas em prosa publicados na revista ‘Hyperion’, em 1912), ‘O Veredicto’ (publicado em uma revista, em 2012) e de ‘A Metamorfose’, de 1915. A coletânea de contos ‘O Artista a Fome’ foi igualmente publicada em pequenas tiragens de folhas volantes”, anotam Felipe Vale e Gustavo de Carvalho.

Os dois testamentos saíram, em 17 de julho de 1924, na revista “Die Weltbühne”. Os romances foram publicados mais tarde. “Foram reorganizados a partir do mesmo caos de papéis encontrado por Brod no dia do funeral: ‘O Processo’ veio à luz em 1925, ‘O Castelo’, em 1926, ‘América’, em 1927”, relatam os tradutores.

Os que gostam de festa com a vida alheia — e, a rigor, quem não gosta? — são contemplados em um comentário dos tradutores. Conta-se que Kafka frequentou “estâncias de nudismo”. Milena Pollak (1896-1944), “primeira tradutora da obra de Kafka”, manteve breve relacionamento amoroso com o escritor, em 1920, com o consentimento do marido dela, Ernst Pollak. Eram “defensores do amor livre”.

Os desenhos do escritor tcheco

Kafka

Vi alguns dos desenhos de Kafka na biografia “Kafka” (Emecé, 274 páginas, tradução de Carlos  F. Grieben), de Max Brod. Meu exemplar, que comprei no site Estante Virtual, é datado de 21 de agosto de 1951 (há 73 anos) e foi publicado em Buenos Aires. Quando o adquiri estava em bom estado, mas, como decidi fazer algumas cópias para amigos, ficou meio destruído e tive de colar várias páginas.

Em fevereiro de 1913, numa carta para Felice Bauer, Kafka escreveu: “Gostou do meu desenho? Ah, você sabe, eu já fui um grande ilustrador, mas então comecei a aprender desenho com um pintor ruim e deteriorei todo o meu talento”.

Os tradutores informam que “poucas ilustrações de Kafka sobreviveram. Brod conta como Kafka preenchia seus cadernos escolares e margens de manuscritos com os famosos bonecos de palito expressionistas quando estava entediado ou reflexivo. (…) Parte dos desenhos de Kafka encontrados na posse de Max Brod foi divulgada pela Biblioteca Nacional de Israel pela primeira vez em 2019. (…) Estão disponíveis no site da instituição”.

O Estado de Israel foi criado em 1948, mas nove anos antes, em 1939, Max e Elsa Brod, fugindo do nazismo, mudaram-se para a Palestina. O bem mais precioso “do” casal eram os manuscritos de Kafka.

Já em 1924, com a intenção de divulgar a obra do amigo, a quem adorava, Max Brod contatou o diretor da Biblioteca Nacional de Jerusalém, Samuel Hugo Bergmann, e o informou que estava de posse de “três romances e muitas obras inéditas aguardam para que alguém as prepare para impressão. (…) Em termos de valor literário, o espólio supera qualquer coisa que Kafka publicou durante sua vida”.

Com a intenção de publicizar a obra e a vida do escritor, Max Brod publicou “o primeiro artigo biográfico do recém-falecido na revista ‘Die Weltbühne”, dando-lhe o título de “O espólio de Franz Kafka”. O texto é de 1924.

O artigo despertou a atenção das casas editoriais. “Em 1934, Shlomo Zalman Schocken comprou todos os direitos autorais da obra kafkiana, direcionando os royalties aos pais do autor.” A editora de Schocken funcionava na Palestina e em Nova York (a Schocken Books). Ele contou com o apoio da filósofa alemã Hannah Arendt e Nahum Glatzer.

Felipe Vale escreve que, “inicialmente, Kafka se torna mais célebre para o público falante de inglês do que para os alemães e judeus palestinos”.

Sempre ativo, Max Brod publicou a primeira biografia de Kafka em 1937. Parte substancial dos manuscritos de Kafka foram depositados num banco de Zurique, na década de 1950. Em 1962, ele entregou parte do material aos sobrinhos do escritor. O “material foi levado para a Inglaterra. Daí o fato de a maior coleção de manuscritos de Kafka do mundo hoje se encontrar na Biblioteca Boldleian de Oxford”.

“O Processo”, diários de viagens, cartas e fragmentos literários não foram repassados para os parentes de Kafka. Israel, o Arquivo de Literatura Alemã em Marbach am Neckar e as filhas de Esther Hoffe, secretária de Max Brod, começaram a digladiar pelos manuscritos de Kafka.

Max Brod (1884-1968), que não lucrou com os escritos de Kafka, deixou seus pertences para Esther Hoffe. A ex-secretária, que o havia ajudado a editar a obra de Kafka, por exemplo “Carta ao Pai”, começou a vender os escritos do tcheco, nas décadas de 1970 e 1980. Felipe Vale ressalta que “isso levou à dispersão do arquivo de Kafka por várias instituições e coleções privadas em todo o mundo”.

O manuscrito de “O Processo”, leiloado na Sotheby’s de Londres, foi levado para o Arquivo de Literatura de Marbach. Custou quase 2 milhões de dólares. Um colecionador particular comprou o manuscrito de “A Descrição de uma Luta”. Cartas de Kafka para Max Brod também foram leiloadas (100 mil euros por missiva)

Alegando “mal uso dos manuscritos” de Kafka, o Estado de Israel processou Esther Hoffe. A ex-secretária de Max Brod ganhou a causa. Porém, quando ela morreu, aos 101 anos, “a Biblioteca Nacional de Israel contestou a legalidade do seu testamento, que transferiu os papéis remanescentes a suas duas filhas septuagenárias, Eva Hoffe e Ruth Wiesler”.

Esther Hoffe foi acusada pela Biblioteca Nacional de Israel de agir contra os interesses da ciência, pois estaria travando o acesso aos manuscritos de Kafka. O Arquivo de Literatura Alemã se recusou a repassar o manuscrito de “O Processo” para Israel.

O professor Otto Dov Kulka disse ao jornal “Haaretz”: “Dizem que os papéis [de Kafka] estarão mais seguros na Alemanha. Que os alemães tomarão conta deles. […] Pois bem, os alemães não têm um histórico de tomar conta do que pertence a Kafka. Eles não tomaram conta de suas irmãs”. Elas “foram assassinadas nos campos de” extermínio “de Chełmno e Auschwitz antes de 1944”.

Os leilões dos manuscritos de Kafka continuaram, como uma carta de Kafka para Max Brod, de 1922 (vendida por 726 mil reais). Trata-se, de acordo com Klaus Wagenbach, de “uma das cartas mais belas já escritas”.

Finalmente, Israel ganhou a disputa contra Eva Hoffe. Felipe Vale afirma que “a Biblioteca Nacional tem demonstrado um cuidado científico exemplar e disponibilizado material inédito (como os desenhos de Kafka, cadernos de exercício de língua hebraica) em seu site.

O livro “O Último Processo de Kafka — A Disputa por um Legado Literário” (Arquipélago Editorial, 272 páginas, tradução de Rodrigo Breunig), de Benjamin Balint, conta a história da batalha judicial pelos manuscritos do escritor tcheco, que, sim, era judeu.

(“Testamento” é um livro maravilhoso, editado e traduzido com capricho, e, por isso, certamente ganhará espaço na estante de todos aqueles que admiram a prosa de Kafka. O que escrevi acima não contempla todas as preciosidades da obra, que, se escassa em quantidade de páginas, é gigantesca em qualidade.)

Euler de França Belém

É jornalista e historiador.