A fantástica solidão dos hiperconectados

A fantástica solidão dos hiperconectados

Estou quase me rendendo à simplicidade. No último final de semana, permaneci vinte e seis horas sem tocar no meu smartphone. Não fiz e não recebi ligações telefônicas. Os demônios do telemarketing não me localizaram. Os golpistas cibernéticos não furtaram o meu suado dinheirinho. Não surfei na rasura enfadonha dos grupos de WhatsApp. Não abri a minha caixa de Pandora, ou melhor, não abri a minha caixa de e-mails. Não bisbilhotei nas mídias digitais dos amigos, dos parentes e dos ilustres desconhecidos que se tornaram íntimos, em certa medida, desde que aderi e que me tornei um viciado em conectividade.  

Acontece com todo mundo. Ou não. Apesar de situada à pouca distância da capital, a fazenda em que estávamos não tinha sinal de Wi-Fi, sinal de internet, sinal de menstruação, sinal de vida em Marte, muito menos, a cobertura da operadora telefônica, cujos concorrentes estavam a ponto de me enlouquecer com ofertas imperdíveis de pacotes promocionais, desde que eu migrasse para a empresa deles. Desliguei o celular e enfiei o desgraçado dentro da mochila, de onde o retirei apenas no final da tarde de domingo, já na rodovia, no caminho de volta para casa. Desconsiderando uma breve internação de CTI, há 5anos, eu tinha batido o recorde pessoal de desconexão com a web.

O mais interessante da experiência foi não ter sentido falta da besta rotina de operar o telefone celular a todo instante em busca de informações, na maioria das vezes, irrelevantes, como alguém que, por exemplo, postava a foto da mão, enaltecendo a si mesma e à manicure pelo tremendo talento para pintar as unhas de vermelho. E eu com isso? Não tinha nada de esperto em transformar o mobile numa extensão do meu braço, nem que fosse para me masturbar. Conformado com a forçosa desconexão virtual, ocupei-me com a companhia das pessoas, em carne-e-osso, com as lides gastronômicas, com as cantorias na roda de violão e com as expedições a pé pelas trilhas do cerrado em busca de dar sangue os carrapatos e de conseguir os melhores ângulos para clicar a flora, a fauna e, por que não, as pedras risonhas do caminho.

Voltei inspirado e um tanto poético daquele bucólico passeio. Depois de um longo período de solidão virtual, notei que era plenamente possível dar um tempo, me reconectar com as pessoas e com a natureza, sem depender daquele moderno e caro equipamento da Apple. Descasquei uma maçã. Meti fogo no carvão. Simone me pediu uma mãozinha para escutar o ribombar dos sinos — em matéria de friccionar superfícies, eu era um verdadeiro DJ. Não me ocupei com nada tão profundo. Ralei milho pra pamonha. Lavei as louças. Quebrei um prato. Enxotei uma perereca que ameaçava seriamente a integridade física e mental das mulheres. Balancei na rede da varanda, embriagado com a beleza do céu estrelado.

Ao chegar em casa, no domingo à noite, conferi o passivo de mensagens e de ligações não atendidas no meu perspicaz aparelhinho de última geração. Pode parecer inacreditável, mas, a minha geração tinha sobrevivido à ausência do Waze, do Google Maps, da Wikipedia e do Tinder. Difícil crescer e multiplicar a espécie usando apenas o próprio charme. Enfim, nada de relevante tinha sucedido nas últimas horas em que mantive o dispositivo desligado, morto e calado. Ninguém tinha nascido. Ninguém tinha morrido. Nenhuma treta nova tinha deixado em polvorosa os grupos do WhatsApp.

Apesar do excesso de tecnologia e de urbanidade, percebi que dava para me ligar novamente às pessoas de uma forma bem mais singela, curtindo a sua presença física calorosa, bebendo vinho, tomando cerveja, repetindo piadas, contando as velhas histórias de sempre que ainda nos faziam gargalhar até encharcar os fundilhos. O nível etílico ajudava a manter o bom humor. Estava frio, seco e poeirento na fazenda. Mesmo assim, a paisagem do cerrado desfilava aos meus olhos como um carro alegórico. Eu me sentia menos afetado pela alergia respiratória, respirava melhor sob a atmosfera amorosa daquela trupe de amigos dos tempos de escola.

Gastávamos o tempo de forma perdulária, leviana. Vivendo. Aprendendo. E desaprendendo certas coisas que não faziam mais sentido. Cantando hits do século passado. Falando que nem Cora Coralina. Confundindo cobra coral com minhocuçu. Cheirando rapé. Receitando chá de melão-de-são-caetano um para o outro. Ouvindo Legião urbana. Amando o amanhã como se não houvesse as pessoas. Valorizando o tempo que restava ao gozar da adorável presença de antigos companheiros. Foi uma curta pausa para uma breve, porém, didática mudança de comportamento. Uma volta ao presente com a certeza da finitude da vida, sem nos ocupar em demasia com o nem sempre sincero verniz das indefectíveis mídias digitais.

Eu sei que pode parecer pouco, mas, vinte e seis horas passaram voando que nem a passarada que preenchia de cantos e cores o encantado pomar florido. Vejam só. Voltei a florear, tornei a raciocinar poeticamente. Algo mais prazeroso, simples e honesto do que clicar naqueles coraçõezinhos vazios do Instagram. Pronto. Curti.       

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.