A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy: a influência de Laurence Stern na literatura universal

A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy: a influência de Laurence Stern na literatura universal

Em um mundo de escritores tão bem-comportados, o genro que toda sogra sonha em ter, vale às vezes voltar os olhos para a história da literatura e ver que não foi de homens assim que a literatura se fez. A moral pequeno-burguesa tem afetado tudo e todos, fazendo homens afetados aos milhões, em série. Mas a grande arte é e sempre foi o terreno da rebeldia, da subversão, do incômodo, dos conflitos, das lutas e das brigas. As obras literárias refletem muito esses espíritos rebeldes e revoltos; esse pensamento livre e criativo de que necessita a arte dificilmente encontraria eco em personalidades de celofane. Laurence Sterne e seu romance “A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy” é o caso de uma rebeldia difícil de medir, mas saborosa de avaliar, analisar e estudar.

Dr. Samuel Johnson, para muitos o maior crítico literário do ocidente, disse que “Tristram” e Laurence, devido àquilo que chamou de extravagância, não ficariam na história da literatura. Os críticos de gabinete quase sempre têm uma visão limitada, restrita da literatura. Aqui vemos o velho Johnson sendo desacreditado pelo jovem Sterne, que queria e faria o novo, não para que do velho se esquecesse, mas para que para a frente se caminhasse. Hoje, com o que o poeta goiano Marcos Caiado chama de “lambibotismo”, vemos as gerações atuais servas dos senhores, como diria João Cabral, “perfume de renda velha, de flor em livro dormida”.

Sterne não era sequer de seu tempo. A sua prosa é tão desconcertante e verdadeira que é mais fresca que o jornal do dia. O livro foi publicado na década de 60 do século 18, embora a primeira edição, custeada pelo autor — destino de alguns gênios à frente de seu tempo — tenha saído em 1759. “Tristram Shandy” foi publicado em nove volumes ao longo de oito anos. A narrativa de Sterne desafia as convenções literárias de sua época com seu estilo não linear, digressões frequentes e a quebra da quarta parede. Esta obra-prima picaresca não apenas revolucionou o romance no século 18, mas também deixou uma marca indelével na literatura subsequente, inspirando uma série de escritores e movimentos literários.

A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy

Uma das características mais marcantes de “Tristram Shandy” é sua estrutura fragmentada. Sterne brinca com a cronologia, criando uma narrativa que avança e retrocede no tempo, refletindo a natureza errática e imprevisível da vida. Essa abordagem inovadora questiona as ideias tradicionais de enredo e sequência, abrindo caminho para futuras experimentações na narrativa.

O livro é um contra-romance; ele faz de tudo para que a narrativa não caminhe, para que o tempo — do texto, da narrativa, do autor e do leitor — seja propositalmente derramado em borbotões de desperdício. Como ler uma autobiografia que não anda? Sterne diversas vezes discorre a respeito das suas digressões, dizendo que sabe exatamente o que está fazendo, pedindo paciência ao leitor algumas vezes. Parece que deu certo, pois o livro alçou Sterne ao estrelato na Inglaterra de então. No livro há um momento em que ele prevê que os conservadores detestarão o seu livro, e claro, faz troça disso. Ele não dá a mínima.

Vamos tentar o impossível: explanar, em sobrevoo, algo que se aproxima do que poderia ser chamado de enredo, trama, diegese: Tristram (narrador e voz narrativa intrusa) é descendente de Walter e Elizabeth. Toby — personagem importantíssimo — é o seu tio, que carrega um ferimento de guerra na região inguinal, ele reside na casa de seu irmão, junto com um parceiro de carreira militar, tornado seu criado, Trim. Enquanto Toby se recupera, volta esforços ao estudo de tropas e infantarias. Sem qualquer aviso, um tema surge: a suposta impotência de Toby, como herança dos ferimentos de guerra. A questão é levantada com um sarcasmo e humor ácidos irresistíveis. Quando a questão da impotência de Toby está prestes a ser revelada de forma completa, já que uma pretendente aparece pelo seu caminho, a senhora Wadman, o romance termina sem resolver o assunto. Tristram é, portanto, um narrador que invade a história, e quase nunca um personagem. Uma autobiografia que se nega a cada parágrafo.

É notável o uso de recursos metalinguísticos, com o narrador, Tristram, frequentemente se dirigindo diretamente ao leitor, comentando sobre a própria escrita e reconhecendo a artificialidade do texto. Esta metanarrativa, que quebra a ilusão de realidade dentro do romance, antecipou técnicas que seriam exploradas por escritores modernistas e pós-modernistas. “Tristram Shandy” é um romance mais que de seu tempo, é um romance do futuro.

A sua influência pode ser vista em diversos autores e movimentos literários. Laurence Sterne é um precursor do modernismo devido à sua exploração das limitações e possibilidades da narrativa literária. A fragmentação e o fluxo de consciência presentes em “Ulysses” de James Joyce e “Ao Farol” de Virginia Woolf ecoam as técnicas narrativas inovadoras de Sterne.

Além do modernismo, a obra de Sterne também teve um impacto significativo no pós-modernismo. Autores como Thomas Pynchon e Kurt Vonnegut adotaram e expandiram o uso de digressões, intertextualidade e a desconstrução da narrativa tradicional presentes em “Tristram Shandy”. A capacidade de Sterne de misturar humor, filosofia e reflexão sobre a natureza da escrita continua a ressoar.

Além de suas inovações formais, “Tristram Shandy” é uma obra rica em temas e reflexões filosóficas. Sterne explora a natureza da identidade, o papel do acaso na vida humana e a complexidade das relações familiares e sociais. Através das histórias dos personagens, ele satiriza as pretensões científicas e racionalistas de sua época, questionando a nossa capacidade de compreender e controlar a vida.

O humor e a ironia de Sterne são ferramentas poderosas para criticar e examinar a sociedade. Seu estilo espirituoso e irreverente desafia o leitor a reconsiderar as verdades e convenções aceitas, promovendo uma visão mais cética e aberta do mundo.

Sua abordagem inovadora da narrativa e sua exploração profunda e humorística da condição humana influenciaram gerações de escritores e continuam a inspirar novas formas de contar histórias. Sterne não apenas ampliou os limites do que um romance pode ser, mas também criou uma obra que, mais de dois séculos após sua publicação, ainda ressoa com leitores e críticos, desafiando e encantando em igual medida.

Recentemente, Machado de Assis voltou a ser tema quente na mídia devido a uma publicação feita por uma TikToker norte-americana. Os críticos brasileiros especialistas em Machado todos se levantaram da cadeira, tentando desqualificar o belo trabalho feito pela TikToker, transformando Machado, nos EUA, em fenômeno de venda, coisa que nenhum professor sisudo das universidades brasileiras conseguiu fazer, sequer no próprio Brasil. Machado, no Brasil, é autor lido no Ensino Médio, geralmente na época do vestibular, e nunca mais relido. Como professor de literatura, modéstia às favas, sempre priorizei que meus alunos soubessem por que Machado — e qualquer escritor por mim trabalhado — é genial e modifica nossa vida, e não que eles saibam quando esses autores nasceram e morreram e onde estão localizados na história da literatura. Claro que essas informações entram, devem entrar, mas não são, nem de longe — nunca foram — minha prioridade.

Nesse levante, alguns acadêmicos recalcados disseram que Harold Bloom e Susan Sontag já tinham dito de Machado aos norte-americanos. Sim, tinham. Mas aos seus pares. Diálogos masturbatórios que mais afastam o leitor comum — que tem a literatura não como profissão, mas como direito — do que aproximam. Ao citarem Harold Bloom, muitos falam da filiação que Bloom anota de Sterne sobre Machado. Preocupados em mostrar que sabem, como todo pomposo, e não em ensinar o que sabe, eles não explicam que influência é essa. Façamos o dever de casa deles.

A influência de “Tristram Shandy” na obra de Machado de Assis é profunda e multifacetada. Machado é conhecido por suas inovações formais e sua habilidade em capturar a complexidade humana. A leitura e a assimilação das técnicas narrativas de Sterne foram fundamentais para o desenvolvimento do estilo singular de Machado, especialmente em seus romances maduros, como “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”.

Primeiramente, a narrativa digressiva de Sterne encontra eco na obra de Machado. Assim como Tristram Shandy frequentemente se desvia de seu relato principal para explorar tangentes variadas, os narradores de Machado, notadamente Brás Cubas, fazem uso extensivo de digressões. Esse recurso não só enriquece a narrativa com comentários irônicos e filosóficos, mas também serve para questionar a linearidade e a previsibilidade do enredo. Em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, por exemplo, o narrador frequentemente interrompe sua narrativa para refletir sobre a vida, a morte e a condição humana, criando um texto fragmentado e dinâmico que lembra a estrutura inovadora de Sterne.

Além disso, a quebra da quarta parede em “Tristram Shandy” tem um paralelo claro nas obras de Machado. Sterne frequentemente se dirige diretamente ao leitor, criando uma cumplicidade e um diálogo que rompe a ilusão de realidade do romance tradicional. Machado adota uma técnica similar, com seus narradores frequentemente reconhecendo a presença do leitor e comentando sobre o ato de escrever. Essa metanarratividade é evidente em “Memórias Póstumas…”, onde o narrador falecido discute a construção de sua própria história, e em “Dom Casmurro”, onde Bentinho reflete sobre sua narrativa e a recepção que espera dela.

Outro aspecto significativo da influência de Sterne em Machado é o uso do humor e da ironia. Sterne utiliza o humor não apenas como entretenimento, mas como uma ferramenta para explorar questões filosóficas e sociais. Machado segue essa tradição, empregando a ironia para criticar a hipocrisia e a superficialidade da sociedade brasileira do século 19. A sátira mordaz de Brás Cubas e o sarcasmo refinado de Bentinho em “Dom Casmurro” são testemunhos do legado de Sterne, evidenciando como o humor pode ser um meio eficaz de profundidade crítica e introspecção.

A abordagem filosófica e introspectiva de Sterne também encontra ressonância na obra de Machado. “Tristram Shandy” é repleto de reflexões sobre a natureza, a identidade e o acaso. Machado, influenciado por essas ideias, frequentemente explora temas semelhantes, questionando a essência da existência e as motivações humanas. Em “Memórias Póstumas…”, o narrador morto oferece uma perspectiva única sobre a vida, desprovida das ilusões e pretensões que muitas vezes acompanham os vivos. Esse ponto de vista cético e desiludido é um reflexo da influência filosófica de Sterne.

Por fim, a experimentação estilística que caracteriza “Tristram Shandy” é um elemento que Machado de Assis abraça e desenvolve em sua própria obra. A liberdade formal de Sterne, que inclui capítulos curtos, uso de espaços em branco e interrupções inesperadas, encontra eco na estrutura não convencional dos romances de Machado. “Memórias Póstumas…” e “Dom Casmurro” desafiam as normas literárias de sua época, adotando uma abordagem mais livre e experimental que permite uma exploração mais profunda e complexa de seus temas e personagens.

O Brasil conta com uma bela tradução do romance de Sterne, feita por José Paulo Paes, publicada pela Companhia das Letras. É um trabalho que foi minha única fonte de contato com o livro. A edição, no entanto, peca por não trazer um material robusto de notas, uma introdução rica, e até um posfácio, útil ao leitor menos instrumentalizado. Na época de ouro das importações feitas pela Livraria Cultura, encontrei a edição definitiva deste livro em português, feita pelo português Manuel Portela, pela Editora Antígona, em capa dura revestida de tecido, riquíssima em notas de rodapé e com uma robusta introdução de mais de quarenta páginas, feita pelo próprio tradutor.

Tive a chance de estudar este romance com a maior especialista nele no Brasil, a professora Sandra Vasconcelos, em um curso do Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP). Esta tradução de Manuel Portela é tão boa, que quando eu a apresentei à professora Sandra, ela logo tratou de adquirir e, tomando contato, passou a recomendar o seu uso em sala de aula e trabalhar o seu brilhante artigo introdutório.

O ponto mais marcante do estudo de Manuel Portela é o em que ele cria um conceito chave para dissecar a obra, o do livro como “máquina de narrativas”. O que seria essa máquina de narrativas em “Tristram Shandy”?

Para Manuel Portela, a estrutura fragmentada e sua abordagem não linear fazem da obra uma verdadeira “máquina de narrativas”, uma obra que não apenas conta uma história, mas explora e subverte as próprias convenções. O ensaio do professor Manuel busca explorar essa característica da obra de Sterne, demonstrando como “Tristram Shandy” funciona como uma máquina complexa e multifacetada de construção de histórias.

A estrutura de “Tristram Shandy” é deliberadamente caótica e fragmentada. Sterne frequentemente interrompe a narrativa principal com digressões, comentários e episódios aparentemente desconexos. Essa fragmentação cria uma sensação de imprevisibilidade. Como Tristram declara: “A vida é cheia de incertezas, e a narrativa deve refletir isso”. Essa abordagem transforma o romance em uma série de pequenas narrativas interconectadas, cada uma contribuindo para o todo de maneira única.

Um exemplo claro dessa fragmentação é a maneira como Sterne lida com o tempo. A narrativa salta entre diferentes períodos da vida de Tristram, muitas vezes voltando atrás para recontar eventos sob uma nova perspectiva. Em um trecho, Tristram diz: “Deixem-me voltar ao começo, pois esqueci de contar-lhes algo essencial”. Esse constante movimento temporal reflete a natureza não linear da memória e da experiência humana, transformando o romance em uma máquina que manipula o tempo ao seu bel-prazer.

A digressão é outra ferramenta fundamental na máquina narrativa de Sterne. Em muitos momentos, Tristram se desvia do enredo principal para discutir temas variados, desde a filosofia até os detalhes mais banais da vida cotidiana. Essas digressões não são meras divagações, mas elementos essenciais que enriquecem a narrativa. Em uma passagem, ele afirma: “Digressões, incontestavelmente, são o sol e a lua; é com elas que a imaginação brilha mais intensamente”. Essa técnica permite a Sterne explorar uma variedade de tópicos e temas, transformando cada digressão em uma pequena narrativa autônoma.

A metanarrativa é outro componente crucial da máquina de narrativas de Sterne. Tristram frequentemente se dirige diretamente ao leitor, comentando sobre o próprio ato de escrever e a construção da história. Em um momento, ele confessa: “Estou escrevendo, na verdade, para meu próprio prazer e proveito”. Essa quebra da quarta parede não apenas envolve o leitor de maneira mais direta, mas também destaca a artificialidade da narrativa, convidando-o a refletir sobre o processo de criação literária.

A intertextualidade é outro aspecto que contribui para a complexidade narrativa de “Tristram Shandy”. Sterne faz inúmeras referências a outras obras literárias, filosóficas e científicas, incorporando essas influências em sua própria narrativa. Ele cita autores como John Locke e Montaigne, integrando suas ideias ao texto de maneira que enriquece e complica a narrativa. Em um trecho, Tristram observa: “Como dizia meu bom amigo Locke, a mente é uma folha em branco”. Essas referências criam uma rede de intertextualidade que amplia o significado e o alcance da obra.

Laurence Stern
Laurence Stern

A repetição é outra técnica utilizada por Sterne para construir sua máquina de narrativas. Muitas vezes, eventos e temas são revisitados sob diferentes ângulos, permitindo novas interpretações e insights. Por exemplo, a história do nariz de Tristram é contada e recontada várias vezes, cada versão acrescentando novos detalhes e significados. Tristram comenta: “Meu nariz, se me permitem, é o ponto de partida e o centro de minha narrativa”. Essa repetição não é redundante, mas uma forma de aprofundar e expandir a compreensão do leitor.

Os personagens em “Tristram Shandy” também são elementos vitais da máquina narrativa. Cada personagem é apresentado com um grau de complexidade e profundidade que lhes confere vida própria. O tio Toby, por exemplo, com sua obsessão por fortificações militares, é uma figura central cujas idiossincrasias e digressões contribuem significativamente para a riqueza da narrativa. Vale dizer que Sterne vem de uma família de militares, tema recorrente na trama. Tristram observa: “Meu tio Toby é um mundo em si mesmo, com suas guerras e fortificações internas”. Esses personagens multifacetados são, em si, pequenas máquinas dentro da máquina maior do romance.

A ironia e o humor desempenham um papel crucial na construção da narrativa de Sterne. O autor utiliza essas ferramentas para criticar e satirizar as convenções sociais e literárias de sua época. Em um trecho irônico, Tristram declara: “Escrever um livro é, na verdade, uma das maiores tolices a que um homem pode se dedicar”. Esse humor não só entretém, mas também subverte as expectativas do leitor, questionando o próprio propósito da narrativa.

A exploração dos limites da linguagem é outra característica que torna “Tristram Shandy” uma fábrica de histórias. Sterne joga com a forma e o conteúdo, utilizando diversas técnicas estilísticas para desafiar a convenção literária. Em um exemplo notável, ele inclui uma página completamente em branco, sugerindo que certas experiências são indescritíveis. Tristram comenta: “Há momentos na vida que nenhuma palavra pode capturar, e, portanto, deixo esta página em branco”. Essa experimentação linguística amplia as possibilidades da narrativa, transformando-a em um campo de constante inovação.

O uso de ilustrações e diagramas é outra forma pela qual Sterne expande os limites da narrativa escrita. Em uma passagem famosa, ele desenha uma linha sinuosa para ilustrar o curso tortuoso de sua história. Tristram explica: “Esta linha é a minha vida, cheia de voltas e reviravoltas”. Essas ilustrações não são meros adornos, mas partes integrantes da narrativa que contribuem para a compreensão e a experiência do leitor.

A reflexão sobre a natureza da escrita e da narrativa é um tema central em “Tristram Shandy”. Sterne constantemente questiona a capacidade da linguagem de capturar a realidade. Em um momento, Tristram lamenta: “As palavras são fracas e insuficientes para transmitir a verdadeira essência das coisas”. Essa meditação metalinguística transforma o romance em uma exploração filosófica sobre os limites e as possibilidades da escrita.

A interação entre o autor e o narrador é outro aspecto que contribui para a complexidade da máquina narrativa de Sterne. Embora Tristram seja o narrador, é evidente que Sterne está sempre presente, manipulando e comentando sobre a narrativa. Essa dualidade cria uma camada adicional de significado, sugerindo que a narrativa é um ato de colaboração entre o autor, o narrador e o leitor. Tristram admite: “Eu sou apenas um instrumento nas mãos do autor, assim como vocês são instrumentos na minha”.

A abordagem de Sterne à construção de personagens é também uma parte vital de sua máquina narrativa. Em vez de seguir uma progressão linear, os personagens de “Tristram Shandy” são desenvolvidos através de anedotas, digressões e reflexões. Em relação ao dr. Slop, Tristram comenta: “Ele é, ao mesmo tempo, um bufão e um sábio, dependendo do ponto de vista”. Essa construção não convencional permite uma compreensão mais holística dos personagens.

A narrativa de “Tristram Shandy” também é notável pela sua autorreflexividade. Sterne frequentemente destaca o processo de escrita e a artificialidade da narrativa. Em um momento, Tristram observa: “Estou ciente de que estou escrevendo um livro, e vocês, leitores, estão cientes de que estão lendo um”. Essa autorreflexividade cria um senso de transparência e intimidade entre o autor, o narrador e o leitor, transformando a narrativa em um diálogo contínuo.

O uso de paródia e pastiche é outra técnica que Sterne emprega em sua máquina de narrativas. Ele frequentemente imita e subverte os estilos de outros autores, criando uma colagem literária que desafia as convenções de gênero e estilo. Em um trecho, Tristram parodia os romances sentimentais da época: “Oh, como meu coração dói, mas não tanto quanto minha imaginação se deleita em exagerar a dor”. Essa abordagem não só critica as modas literárias, mas também amplia o alcance e a versatilidade da narrativa.

A polifonia de vozes em “Tristram Shandy” é um elemento que também contribui para a sensação de que o romance é uma máquina de narrativas. Sterne permite que múltiplas vozes e perspectivas coexistam, criando um mosaico narrativo que reflete a diversidade e a complexidade da experiência humana. Tristram reconhece: “Minha história não é apenas minha, mas de todos aqueles que encontro e que moldam minha vida”. Essa polifonia enriquece a história, tornando-a mais dinâmica e inclusiva.

A ideia de causalidade e acaso é outra questão explorada por Sterne. Em vez de apresentar uma sequência lógica e previsível de eventos, “Tristram Shandy” frequentemente enfatiza o papel do acaso e da coincidência. Tristram comenta: “A vida é uma série de acasos, e minha história não é diferente”. Essa abordagem desafia as noções tradicionais de causa e efeito na narrativa, subvertendo as expectativas do leitor.

Outro ponto central do ensaio de Manuel Portela é o que ele brilhantemente intitula de “Os efeitos especiais do romance”. São vários. O livro é uma festa tipográfica: a pontuação é irregular, os travessões têm dimensões diversas e funcionalidades na semântica da narrativa, páginas com o espaço reservado à mancha gráfica todas recobertas de preto, traduzindo em imagens o motivo de morte de um personagem trabalhado anteriormente, página em branco para que o leitor possa desenhar no livro como visualiza o personagem que ele acaba de descrever, páginas em branco para anunciar a falibilidade da linguagem. A indicação de fontes é outro recurso explorado. Umas vezes à sério, outras como chacota, o romance briga com o gênero, já que as referências são finca-pé de um texto acadêmico, aquilo que o assentaria na realidade, na verdade, enquanto o romance se quer, e deve ser, ficção.

Essa contrafação do romance é muito interessante no livro diante da fartura de documentos que são reproduzidos no texto. A dimensão entre realidade e imaginação é posta à prova não só por questões de tema e estratégia, mas por todos os recursos disponíveis ao objeto livro.

O romance de Sterne não é fácil, e nem curto. Difícil pensar que um mundo tão instagramável, no qual os textos curtos vigoram, ou em que imagens sempre falarão mais do que palavras, um grande número de leitores se entregue à fascinante experiência de Sterne. Sempre quero falar de livros de modo a chamar para a leitura, para dividir essa felicidade única e tão autônoma que a literatura nos dá. Quem lê se torna o verdadeiro homem forte. Se você tem a literatura, pode perder a pessoa que mais amou em sua vida — uma mãe, por exemplo —, mas encontrará na leitura a força para continuar. Não é por acaso que Proust fala da literatura como a mais verdadeira — para ele a única — forma de genuína amizade.

Ler “Tristram Shandy” é uma experiência enriquecedora que pode refinar e apurar não apenas nossas habilidades de leitura, mas também nossa inteligência e compreensão da condição humana. O romance de Sterne expande nosso horizonte intelectual ao introduzir-nos a uma vasta gama de ideias filosóficas, sociais e psicológicas. Sterne incentiva-nos a refletir profundamente sobre nossa vida e nossas ações.

A obra obriga-nos a reconsiderar o que sabemos sobre a estrutura e a linearidade de uma história. Isso nos torna leitores mais críticos e abertos a diferentes formas de narrativa. A complexidade e a profundidade do texto exigem um alto nível de concentração e análise. Ler Sterne aumenta nossa capacidade de pensamento crítico e nossa habilidade de compreender e interpretar a literatura ou qualquer outro texto complexo.

Temos ali retratos profundos dos personagens, explorando suas motivações, falhas e virtudes. Isso desenvolve nossa empatia e uma melhor compreensão das complexidades da natureza humana. Perdemos a vergonha de errar lendo Tristram, e nos livramos de qualquer culpa. De certa forma, a moralidade realista do livro nos revela que ninguém é a palmatória do mundo, e todos os telhados são de vidro. “Tristram Shandy” aumenta nossa generosidade, com os outros e conosco. Vemos com ele que a vida é mais sobre mãos estendidas do que sobre dedos apontados.

Ao lidar com personagens complexos e suas interações, nos tornamos mais habilidosos em identificar e compreender nuances psicológicas e emocionais em outros textos literários. Uma espécie de empatia a partir da compreensão das emoções humanas são componentes essenciais da inteligência, e somos expostos a essas experiências desde a primeira página desta narrativa de sinceridade desconcertante. É nítido que a pergunta, tão chã e provinciana, “o que vão pensar de mim?”, passa ao largo da genialidade de Sterne. Ele não se preocupa nada com isso, apenas em ser ele mesmo.

Ler uma narrativa tão inovadora nos inspira a pensar fora da caixa e a abraçar a criatividade em nossas próprias vidas. A exposição a técnicas narrativas não convencionais amplia nossa compreensão do que é possível na literatura, permitindo-nos apreciar e analisar uma gama mais ampla de obras literárias.

Mas o que mais fica dessa leitura é a sua alegria, a sua perpétua felicidade, construída nas bases mais sólidas de nossa consciência, criatividade e humanidade.

A abordagem lúdica de Sterne transforma “Tristram Shandy” em uma profunda e grande brincadeira séria, talvez a maior brincadeira da literatura ocidental.