O mundo do cinema adulto anda sumido das plataformas de streaming — e nas salas de cinema, então, é uma raridade. Os estúdios mal investem em roteiristas e diretores interessados em explorar a vida de casais aparentemente normais que se envolvem em jogos libidinosos que, no âmbito cinematográfico, quase sempre têm um desfecho trágico. Eventualmente, em cantos mais discretos da internet, encontram-se produções que abordam o tema com mais profundidade, mas quem se aventura por essas vias pode sentir-se como um desajustado. Afinal, parece não haver mais espaço para excentricidades condenadas pelo politicamente correto.
“Águas Profundas” (2022), de Adrian Lyne, transborda de perversão sexual e desafios aos bons costumes, algo que, vindo de Lyne, não é pouco. O diretor britânico, conhecido por obras icônicas do gênero como “Lolita” (1997), “Proposta Indecente” (1993), “Atração Fatal” (1987) e “9 ½ Semanas de Amor” (1986), mantém sua habilidade afiada, como seu mais recente trabalho demonstra. Aliás, em muitos aspectos, Lyne se supera nesta nova produção.
Apesar de “Águas Profundas” ter dividido opiniões — com uma parte elogiando a ousadia de Lyne e outra, composta por críticos menos entusiastas, acusando o filme de sensacionalismo —, a obra vai além das controvérsias e brilha por si só, recusando-se a ceder ao conformismo das opiniões comuns. A verdade é que o público não está cansado de filmes como este; as pessoas se cansam apenas do que é repetitivo e previsível.
Inspirado no romance homônimo de 1957, escrito por Patricia Highsmith (1921-1995) — também autora de “O Talentoso Sr. Ripley” (1955), adaptado para o cinema por Anthony Minghella (1954-2008) em 1999 —, o roteiro de Zach Helm e Sam Levinson foca naquilo que realmente importa. Vic Van Allen, interpretado por um Ben Affleck seguro e perfeitamente encaixado no papel, é um homem aprisionado em um casamento fracassado. Ele vive com Melinda, personagem reveladoramente interpretada por Ana de Armas, mantendo-se ao seu lado principalmente por causa da filha do casal, Trixie, vivida por Grace Jenkins. A relação entre Vic e Melinda, uma vez apaixonada, agora é uma complexa rede de desencontros e desilusões. Vic, tentando reconquistar Melinda, cede aos seus caprichos, mas apenas se distancia ainda mais, preso em um ciclo de mentiras e falsas esperanças.
Os momentos libertinos, como o que ocorre logo no início do filme, são o que mantêm o casal junto. Vic tolera a infidelidade de Melinda, que se entrega a quem desperta nela o desejo que o marido não consegue mais satisfazer. Na sequência inicial, Melinda está acompanhada de um jovem atraente que ela mesma convidou para uma reunião em sua casa, mas poderia ser qualquer outro, independentemente da aparência. Quando se afasta, Vic diz ao rapaz que matou o último amante de Melinda e escondeu o corpo. Pode ser apenas uma provocação de um marido atormentado, mas deixa uma dúvida: será que Vic realmente encontrou uma maneira de expressar seu desprezo por Melinda eliminando os homens com quem ela se envolve?
Com a chegada de Lionel, interpretado por Tracy Letts, o enredo se complica ainda mais. Lionel suspeita que Vic seja um assassino, e a descoberta de que Vic ganhou dinheiro vendendo drones para países em guerra levanta questões sobre o valor da vida humana. Esse dilema ofusca a narrativa predominantemente erótica e cheia de suspense, mas é aí que Lyne faz a virada que “Águas Profundas” precisava. O segredo para decifrar o enredo é ver Vic e Melinda como predadores: Vic, fascinado pelo poder que o dinheiro proporciona; Melinda, pelo poder do sexo. Vic controla a vida das pessoas através da tecnologia, enquanto Melinda sente-se viva através das aventuras amorosas. Vic se culpa por não satisfazer a esposa, que, ao mesmo tempo, exibe uma gratidão superficial.
O final, abrupto e caótico, pode não agradar aos puristas, mas Lyne está consciente de suas escolhas. Freud disse certa vez que quanto mais perfeita uma pessoa parece ser por fora, mais demônios ela esconde por dentro. Essa citação se aplica perfeitamente aos personagens de Ben Affleck e Ana de Armas em “Águas Profundas”. A audácia de um diretor octogenário, que já foi indicado ao Oscar por “Atração Fatal” e ao Framboesa de Ouro por “Proposta Indecente”, ainda tem a capacidade de expor o lado obscuro e primitivo de pessoas sofisticadas e sedutoras. Pode ser um retorno breve, mas Adrian Lyne ainda está no jogo e pretende permanecer, para o desagrado de muitos críticos de Hollywood.
Filme: Águas Profundas
Direção: Adrian Lyne
Ano: 2022
Gênero: Thriller erótico
Nota: 9/10