A obra-prima de Sam Mendes, vencedora de 3 Oscars, é o melhor filme que chegou à Netflix em agosto Divulgação / Universal Pictures

A obra-prima de Sam Mendes, vencedora de 3 Oscars, é o melhor filme que chegou à Netflix em agosto

Em “1917”, Sam Mendes subverte alguns chavões onipresentes nos filmes de guerra, dispensando as tantas pirotecnias tecnológicas de que a maior parte dos diretores tanto se envaidece. O roteiro, de Mendes e Krysty Wilson-Cairns, aprofunda-se num episódio controverso durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Tomando por base a história que o avô lhe contara, Mendes elabora uma odisseia entre fantástica e ancorada no chão duro da realidade, como o relato que a fomentou — e nem poderia ser de outro modo. 

Nascido em Trinidad e Tobago e descendente de portugueses presbiterianos da ilha da Madeira, Alfred Hubert Mendes (1897-1991) se destacou como escritor, um dos mais proeminentes do Caribe no século 20. Contando com uma produção literária sucinta, mas brilhante, Alfred Mendes foi mandado a um dos inúmeros campos de batalha entre a Inglaterra e a França, britânicos e alemães a alguns quilômetros uns dos outros, pouco depois de completar vinte anos, em 1917. A partir daí, Sam Mendes entra com sua extravagância sofisticada, sob a forma dos cabos Blake, vivido por Dean-Charles Chapman, e Schofield, de George MacKay. Os praças são acordados depois de um sono breve e ficam sabendo que foram designados para uma missão tão honrosa quanto absurda.

Blake e Schofield são informados de que em outro posto de combate, não muito longe, mas nem tão perto, uma das tropas do Reino Unido que combatiam a Alemanha, em que o irmão de Blake serve, havia programado uma ofensiva para dali a pouco, a fim de encurralar os destacamentos germânicos. Mas os planos mudaram. A equipe de inteligência estudara melhor o caso e concluiu que tudo não passava de uma tocaia dos alemães, que pode redundar num massacre para os britânicos. Como as linhas de rádio estão desativadas, resta aos personagens de Chapman e MacKay ir até lá, a pé, para não serem avistados pelos radares, a fina flor da tecnologia bélica de então, e avisar que o ataque estava sendo abortado. 

Mas para que isso aconteça, terão antes, por óbvio, de chegar a salvo depois de uma jornada por uma faixa de terra plena de riscos. Seguindo a tendência de produções como “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), dirigido por Steven Spielberg, e “Apocalypse Now” (1979), de Francis Ford Coppola, e fazendo deles uma terceira história, “1917” descreve com impressionante realismo a barbárie de pelotões ricamente armados em disputa, e causa espécie que o resultado desse banho de sangue permaneça solenemente obscuro, longe do que se acha nos livros de história e mesmo de documentários que esmiúçam o casamento entre poder, política e Forças Armadas, marchando de mãos dadas e passando por cima da frágil sensatez.

Ajudado pela fotografia premiada de Roger Deakins, colaborador assíduo de Denis Villeneuve e dos irmãos Coen — e do célebre (falso) plano-sequência da abertura —, Mendes apresenta sua versão para um evento desconhecido, como tantos ao longo do curso da humanidade, dando a seu trabalho o caráter de épico de guerra, com maior realce na conduta heroica dos personagens centrais, dois pacifistas completamente deslocados em meio a um ambiente em que não se reconhecem, cuja monstruosidade, todavia, não lhes aparta do que são em essência, aludindo a “Até o Último Homem” (2016), mais uma obra-prima que ilumina zonas funestas da alma humana, uma especialidade de Mel Gibson, e, mais ainda, “Nada de Novo no Front“ (2022), o conto de horror definitivo sobre conflitos bélicos e suas devastadoras consequências num povo e num indivíduo, a releitura de Edward Berger para o romance homônimo do alemão Erich Maria Remarque (1898-1970).

O elenco afinado, que reúne de Colin Firth a Mark Strong, passando por Benedict Cumberbatch e Andrew Scott, em sequências em que a precisão dos movimentos importa tanto como a própria narrativa, é mais um dos incontáveis predicados do longa, que tinha tudo para morrer na praia. Sam Mendes, um dos cineastas mais relevantes de seu tempo, foi além da imaginação em “1917”. E a sanha de poder de sátrapas de todo o mundo segue engordando, à custa de pólvora, cadáveres e… tecnologia.


Filme: 1917
Direção: Sam Mendes
Ano: 2019
Gêneros: Guerra/Drama
Nota: 9/10