Obra-prima de Robert Eggers na Netflix fará 93 minutos parecerem uma experiência de uma vida toda Divulgação / Universal Pictures

Obra-prima de Robert Eggers na Netflix fará 93 minutos parecerem uma experiência de uma vida toda

A trajetória humana é marcada por tentativas contínuas de inclusão no mundo, definindo regras de conduta à medida que novos territórios são explorados. Os contos de fadas, em sua essência, servem como alertas sobre as consequências de desobedecer a essas normas estabelecidas. O filme “A Bruxa” (2015) se apropria do desejo incessante de liberdade feminina para narrar a desintegração de uma família na América do século XVII, precisamente devido a essa aspiração considerada transgressora.

No longa-metragem dirigido por Roger Eggers, a inclusão de sermões ressalta a necessidade de se conformar a normas para evitar a danação eterna, estabelecendo um paralelo com os antigos contos pagãos. Eggers insere diálogos que abordam dilemas fundamentais da humanidade, iluminados por Jó, que utiliza alegorias em seu livro bíblico para convencer o homem a seguir o caminho divino. Entretanto, “A Bruxa” não busca ensinar moralidades; ao contrário, leva o espectador a se ver nas personagens pecadoras e falíveis, espelhando a imperfeição humana.

Entrelaçando religião, política e filosofia, o filme desafia o público a discernir as intenções complexas de Robert Eggers. Katherine, interpretada por Kate Dickie, é uma mãe enlutada que entende seu papel na pequena sociedade familiar composta por William (Ralph Ineson), seus filhos Jonas e Mercy (Lucas Dawson e Ellie Grainger), Caleb (Harvey Scrimshaw), o bebê Samuel, e Thomasin (Anya Taylor-Joy). Após serem expulsos de sua comunidade original por não se adequarem aos dogmas religiosos locais, a família se isola nas bordas de uma floresta, onde a convivência íntima se torna inevitável e o caos se instala.

Thomasin emerge como a força central do filme. A inocência e a pureza aparentes de Taylor-Joy contrastam com a ideia de pecado, sugerindo que alguém tão imaculado pode inspirar pensamentos impuros. À medida que Thomasin amadurece, seus familiares percebem sua transformação e enfrentam o dilema de sua feminilidade. Se, por um lado, sua força de trabalho é necessária, por outro, seus pais desejam casá-la para que ela assuma sua própria vida. Isolados, a família não pode oferecer a Thomasin o futuro convencional esperado, e Eggers explora questões sensíveis como abuso e violência doméstica, ilustrando a difícil realidade da jovem mulher.

O aspecto sobrenatural do filme se intensifica com o desaparecimento do bebê Samuel, após uma brincadeira de Thomasin. A presença do mal é evidente na floresta, onde uma bruxa ancestral percebe a família como intrusos. Anteriormente ocupados com as demandas diárias da vida comunitária, agora os colonos enfrentam forças invisíveis que os enfraquecem. A figura demoníaca de Black Philip, o bode negro, simboliza a presença maligna que assombra a família. A imagem do bode, frequentemente associada ao demônio, revela um simbolismo profundo que ressoa com a narrativa de “A Bruxa”.

“A Bruxa” transcende a história de uma jovem em meio à ignorância e opressão de séculos passados, especialmente para mulheres. O diálogo entre Black Phillip e Thomasin revela a vulnerabilidade humana diante da busca por identidade e liberdade. O filme não apenas retrata a autodestruição de uma família, mas também reflete sobre a condição feminina em sociedades patriarcais opressoras. A luta de Thomasin simboliza o anseio por liberdade e reconhecimento, comovendo profundamente o público. Para muitas mulheres, a vida poderia ser repleta de luxos e aventuras, mas a realidade é bem diferente. “A Bruxa” é uma obra que desenha, com a maestria de Johannes Vermeer, um retrato tocante e doloroso da jornada feminina, destacando a luta contínua por igualdade e respeito.


Filme: A Bruxa
Direção: Robert Eggers
Ano: 2015
Gênero: Terror/Fantasia
Nota: 9/10