A vida, apesar de suas incertezas, é essencialmente composta por sonhos. Alguns se realizam, enquanto outros permanecem adormecidos nas profundezas da alma humana, quase esquecidos, como uma donzela encantada à espera de um salvador. Esses pensamentos extravagantes moldam as ideologias mais absurdas que a humanidade incessantemente persegue, alimentando um desejo de vida que muitas vezes não é vivida plenamente. É nesse cenário de tentativas insanas de transcender a materialidade da existência que enfrentamos nossas dores, ilusões e a hostilidade dos dias que se erguem contra nós.
Com sua notável sofisticação, Vincenzo Natali transforma o comum em extraordinário, trazendo uma frescura inédita ao adaptar “Campo do Medo”, na Netflix, uma das muitas histórias de terror psicológico de Stephen King, coescrita com Joe Hill. Natali consegue extrair da narrativa nuances que a prosa de King apenas sugere, superando as limitações inerentes a qualquer autor, seja ele erudito ou popular. A abordagem do diretor, que infunde sua visão pessoal nas passagens específicas do livro, resulta numa diferença sutil que raramente se observa.
Natali, com uma carreira bem-sucedida na televisão americana, destacando-se com séries como “Hannibal” e “Deuses Americanos”, traz à tona ideias que poderiam parecer absurdas sob a direção de outro cineasta. Em “Campo do Medo”, o absurdo se harmoniza com aspectos concretos da vida, revelando as inquietações profundas da alma humana.
A narrativa inicia com um prólogo visualmente cativante, onde um homem e uma mulher atravessam o Kansas em um carro, com enquadramentos que capturam a brisa balançando o verde das plantações sob um sol dourado, graças à fotografia de Craig Wrobleski. Os personagens Cal, interpretado por Avery Whitted, e Becky, vivida pela canadense-brasileira Laysla de Oliveira, são irmãos, e não um casal. Becky, jovem, bonita e grávida, enfrenta o desprezo do pai de seu filho, adicionando uma camada de tensão emocional à história.
A viagem dos irmãos pelo coração da América em uma van desgastada é interrompida quando param ao lado de um campo aparentemente inócuo, mas logo ouvem um grito de socorro. Essa é a porta de entrada para o horror que King frequentemente situa no Meio-Oeste americano, uma terra onde o fantástico e o diabólico ganham vida.
O aparecimento de Tobin, um garoto pedindo ajuda, desencadeia memórias da infância problemática de Cal e Becky, refletindo o estado deplorável em que se encontram. Will Buie Jr. se destaca como Tobin, ofuscando as atuações dos veteranos Rachel Wilson e Patrick Wilson, que interpretam os pais do garoto. A transição do segundo para o terceiro ato é marcada por efeitos visuais convincentes que introduzem uma rocha mágica “no centro do centro do mundo”.
A trilha sonora de Mark Korven, um elemento sempre crucial nas adaptações de King, guia o espectador até o desfecho. A poderosa metáfora de uma igreja oposta ao labirinto de caniços inspira Becky a confrontar seus demônios internos e tomar a decisão correta, muitas vezes sob uma intensa pressão emocional.
Filme: Campo do Medo
Direção: Vincenzo Natali
Ano: 2019
Gêneros: Thriller/Terror/Drama
Nota: 9/10