Se você escolheu fantasiar a vida, não ache ruim quando a verdade atropelar como um trator

Se você escolheu fantasiar a vida, não ache ruim quando a verdade atropelar como um trator

Quando se é criança, existem fantasias sobre monstros, bruxas, amigos invisíveis, diálogos curiosos e uma série de inverdades que, de uma ou outra forma, ajudam a interpretar a realidade. A idade vai chegando e inocentemente a crença em que a racionalidade a substitua. Que incauto! A fantasia troca de roupa e de nome: vai-se tornando polida e discreta, mas sua presença continua firme na vida adulta. Não dá para evitar, faz parte de nós. Ela perpetua uma sensação de liberdade da qual se é obrigados a renunciar em prol de uma realidade quase sempre mais sem graça.

Fantasiar pode ser ótimo, um preenchimento eficaz do vazio existencial que abranda um pouco a angústia. É por isso que arte, música, dança e religião se fazem presentes desde sempre: um bocado de purpurina trabalhando com voracidade para ressignificar histórias, com um mínimo de consciência. Perfumaria que deslumbra, inebria e encoraja. Fantasiar é necessário. “A arte existe por que a vida não basta”, resumiu Ferreira Gullar. Fantasia-se para sobreviver.

Só que o negócio complica quando a fantasia transforma seu dono em refém. Deixa de ser apenas refúgio e vira morada, castigando seu criador de forma penosa. Vide Fräulein Elisabeth Von R., uma jovem senhorita que aos 24 anos iluminou a borbulhante mente de Freud sobre a relação do ser humano com a fantasia. Elisabeth tinha dores horríveis na perna, mas, curiosamente, parecia sentir mais prazer do que dor quando a região sensível era beliscada. Após diversas sessões, o pai da psicanálise concluiu que Von R. nutria um amor proibido pelo cunhado, viúvo da irmã da paciente, e a negação era tamanha que a fizera canalizar a dor, numa espécie de autoflagelação.

Há tantos “cunhados” por aí! Tantas fantasias que viram escapismo e morada! Tem gente que vive no sonho de grandeza: se acha melhor do que é, ignora debilmente o lugar a que pertence e se acredita imenso e superior. Tem gente que nunca falou com o pretenso amor, mas já se considera casado, com filhos, cachorros e uma casa com cerca branca. Tem gente que se sente perseguido e amaldiçoado pelos deuses e se vê como o miolo de um quadro de dardos venenosos: cada reles alma do mundo, no fundo, está contra ele. Tem gente que se convence das maiores maluquices para justificar ciúmes infundados. Tem gente que vive a morte e morre por dentro a cada dia, esperando o momento em que finalmente ela o virá buscar. Enfim, tem gente que faz da fantasia uma poção diária de refúgios terríveis, capazes de arrancar a paz, poluir o cérebro e desgastar a alma.

Quando se patrocinam fantasias, entrega-se a elas o poder de restringir a plenitude. Não é difícil ultrapassar o frágil portal da sanidade, só que a vida não congela enquanto o indivíduo divaga nesse poço sem fundo. O momento do baque pode ser cruel: de repente, compreende-se que nunca haverá filhos com o ilustre desconhecido, que toda a grandeza cabe num potinho de insignificância, ou que a razão de tanto ciúme é só fruto de um delírio. De repente, o raquítico castelo de areia se desfaz ao vento, e a realidade bate sem qualquer comiseração.

Fräulein Elisabeth Von R. negou fortemente a suspeita de Freud sobre a paixão por seu cunhado (embora a mãe da paciente a tenha confirmado), mas curiosamente melhorou quando aceitou e enfrentou a questão. As dores a abandonaram junto com a fantasia que a consumia de forma sorrateira. A partir do momento em que divisou quem era e o que queria, entendeu suas limitações, superando-as finalmente.

Não há saída que não o autoconhecimento, sempre ele. Entender as próprias necessidades e procurar a origem das fugas fantasiosas é dar-se ao direto de ser feliz fora do sonho. De morar fora da caixa e fazer dela apenas um bom e saudável refúgio.