Em “O Sonho de um Homem Ridículo”, conto publicado em 1877, Dostoiévski narra a história de um homem desacoroçoado, desesperançoso, perdido, tão insignificante que o autor sequer deu-se ao trabalho de dar-lhe um nome. Esse homem vaga pelas ruas mal iluminadas de uma São Petersburgo fustigada por um inverno que não tem clemência. O sujeito se deixa tomar por pensamentos monomaníacos de impotência e morte, o que já não lhe diz mais nada: ele era irremediavelmente um homem sem nenhuma importância, nem para os outros nem para si mesmo.
Muito da história de Hollywood se deve às obsessões de estúdios e diretores com essas figuras moralmente ambíguas, mas de natureza inquebrável, e intérpretes como Liam Neeson firmaram suas carreiras mediante uma saudável teimosia, o que produções a exemplo de “Na Mira do Perigo” atestam com largueza. Neeson parece talhado para encarnar essas figuras meticulosamente situadas entre a vilania e as qualidades que de fato importam num homem, atributos cada vez mais em falta num mundo orientado e premido pelo politicamente correto, golpe que mesmo ele acusa de quando em quando.
O amor é o comportamento mais racional que alguém pode assumir. Ninguém ama sozinho, por óbvio, porém mesmo quando redunda no fracasso mais humilhante, o mais humano dos sentimentos desvela lados surpreendentes da vida de alguém, a começar pelo progresso cognitivo. Para se amar e se deixar ser amado, é preciso o mínimo de discernimento, de agilidade de raciocínio, de desembaraço frente às circunstâncias verdadeiramente perturbadoras que definem em que grau duas pessoas estão de fato comprometidas uma com a outra, sequência de pequenos métodos que falam diretamente à certo ânimo para a honestidade inabalável.
O amor improvável de James Hanson, um ex-fuzileiro naval e veterano da Guerra do Vietnã (1955-1975), agora numa vida sossegada no sul do Arizona, na fronteira com o México, por Miguel, um garoto mexicano perseguido por coiotes depois que a mãe não resiste à travessia ilegal de um para o outro lado, é o argumento de que Robert Lorenz se utiliza a fim de tocar em assuntos espinhosos com alguma doçura.
A experiência de Lorenz como produtor de clássicos durões do cinema recente, a exemplo de “Menina de Ouro” (2004) e “Gran Torino” (2008), ambos de Clint Eastwood — a quem dirigiu em “Curvas da Vida” (2012) —, o aproxima do melhor que esse nicho limitado pode oferecer, e ainda que a semelhança de “Na Mira do Perigo” se pareça mesmo com Eastwood, o roteiro do diretor, coassinado com Chris Charles e Danny Kravitz, só sobrevive graças à escolha em manter o eixo da história em torno de Neeson e Jacob Perez, que sempre responde à altura ao colega mais tarimbado, e cristaliza seu talento na cena final, sozinho. Como o velho Jim também há de passar o resto de seus dias — mas grato a si próprio por ter feito a coisa certa.
Filme: Na Mira do Perigo
Direção: Robert Lorenz
Ano: 2021
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 8/10