Não é de hoje que figuras e paisagens saem de quadros para imiscuírem-se na vida de gente de carne e osso. No caso de “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, o belo drama de época de Céline Sciamma, a modelo que ocupa a cena, ao contrário do protagonista de “O Retrato de Dorian Gray” (1890), o terror gótico de Oscar Wilde (1854-1900), anseia por deixar o mundo ideal de figuras que nunca sofrem e desencantar, podendo, afinal, distinguir o viver do mero existir.
O roteiro de Sciamma concentra-se nas evoluções de Marianne e Héloïse, as duas jovens moças em flor estritamente ligadas à tal pintura mencionada no título, reservando a cada uma destaque equivalente, até que a história começa a manifestar preferência por uma delas, embora jamais se consiga entender suas dores, frustrações e receios em separado. É esse o gancho de que a diretora-roteirista se vale para falar da condição quase desumana das mulheres do século 18, na França em qualquer outro lugar, obrigadas a abrir mão de uma carreira promissora ou a entregar-se a um casamento por conveniência, pequenos infortúnios que levavam a grandes tragédias.
Marianne, a pintora interpretada por Noémie Merlant, chega à propriedade da família de Héloïse, em alguma escarpa da Bretanha, contratada pela mãe da garota, uma condessa cujo último golpe para evitar a debacle irreversível é casá-la com um nobre milanês. O noivo exige receber uma imagem dela antes que o matrimônio seja sacramentado, e, então, Sciamma tira da cartola os tantos conflitos que definem sua história. Héloïse volta de um convento beneditino pouco depois da morte enigmática da irmã, também núbil, que despenca de um abismo, o que Sophie, a criada, diz ter sido de propósito.
Esse núcleo das quatro mulheres, Marianne, Héloïse, a condessa e Sophie, cada qual perdida entre seus devaneios tão íntimos e as urgências da vida como ela é, comuns a todas, dão um pouco mais de providencial austeridade a uma trama feminil demais, delicada em excesso, o que prepara o espírito do público para a aproximação iminente de Marianne e Héloïse, que acredita que a nova habitante da mansão é apenas sua dama de companhia. Aos poucos, como não poderia ser de outro modo, as duas se achegam, e essa proximidade é o único recurso de que a pintora dispõe para registrar com fidelidade os detalhes de sua musa.
Sciamma azeita uma engrenagem sofisticada para falar de um romance proibido, com direito a planos-detalhe das mãos e das orelhas de Héloïse para aludir, num só movimento, a um erotismo bastante sutil e ao motivo de Marianne estar ali. Se até aqui Merlant dominara a ação, Adèle Haenel sai da periferia e desabrocha, sentimento que fica ainda mais nítido num lance das duas na praia, quando Marianne confessa estar na casa para fazer-lhe o retrato.
A diretora não esquece Sophie e a condessa, criando subtramas nas quais enfatiza o talento de Luàna Bajrami e Valeria Golino, nessa ordem — uma sequência em que a empregada revela a Marianne estar com as regras atrasadas, e em seguida, as duas surgem junto com a patroa, colhendo ervas para um chá abortivo, é mais uma a enaltecer a beleza de se abordar temas sérias com graça e sem escândalo. Não se estraga a surpresa ao se comentar que Marianne e Héloïse não terminam juntas, dada a época e o contexto histórico em que se conhecem; há que se atentar para outro pormenor: o jeito que Sciamma usa para dizer que a vida continua. E as paixões, seja como forem, mais cedo ou mais tarde acabam serenando.
Filme: Retrato de Uma Jovem em Chamas
Direção: Céline Sciamma
Ano: 2020
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10