Minhas quedas (sem metáfora, mas com simbologia)

Minhas quedas (sem metáfora, mas com simbologia)

Decidi escrever este texto após minha mais recente queda (quase escrevi “última”, mas preferi ser mais preciso). Meu plano era escrevê-lo após a próxima queda, para que estivesse mais fresco na memória, mas como ainda não caí novamente, resolvi escrever de qualquer maneira, como uma homenagem aos terapeutas que cuidam de mim, que cuidam de nós.

Caí várias vezes devido à ataxia Machado-Joseph (SC3), mas não vou relembrar todas, principalmente porque sou prolixo. Relatei em outra crônica publicada minha queda no metrô em Lisboa antes do primeiro encontro com o supervisor de pós-doutorado, Abel Barros Baptista. Uma senhora, sem poder me ajudar a levantar, sacudiu a poeira da minha blusa e mochila, como se tirasse toda a sujeira e peso do mundo, e me disse, como no samba: “Reconheça a queda e não desanima / Levanta, sacode a poeira / E dá a volta por cima”. Descobrir os vários jeitos de “dar a volta por cima” parece ser o nosso enigma.

A queda que motivou este texto aconteceu na calçada do prédio do meu amigo Manoel Gustavo — a segunda com ele por perto, mas sem me ver. Saí do Uber, apoiei na árvore e Manoel disse: “Vou comprar um refri pra gente. Tá de boa aí?”. Respondi que sim, e achei que conseguiria dar mais alguns passos. Como sabem os irmãos PCD (Pessoas com Deficiência), se você quer uma aventura de paciência e raiva, vá andar com algum PCD estimulando e protegendo sua autonomia pelas cidades. Nos espaços públicos ou privados, infelizmente tanto faz. Acessibilidade só serve para campanha.

Na Europa é difícil, no centro do Brasil é ainda mais, e em qualquer lugar que precise de sensibilidade, política pública e atenção às demandas de quem efetivamente precisa. Estou me candidatando a assessorar algum bom projeto sobre a vida urbana e os PCD para as eleições municipais. Andar na rua é uma aventura de risco alto, mais desafiadora que trilhas para cachoeiras no mato. Disse ao Manoel: “Minha próxima crônica vai se chamar ‘Minhas quedas’. Vou fazer uma espécie de etnografia da cidade”. E ele: “Isso que eu chamo de confiança na sua poética!” Podia ser uma sacada, uma tirada, ou algo qualquer. Tomei como um incentivo.

Não assisti ao filme, mas é muito bom o título: “Anatomia de uma queda”. Depois da queda, disse que estava tudo bem, que havia desequilibrado na dobra da calçada, torci o pé e, para não sofrer algo mais grave, desabei. Um senhor que entrava me acolheu, levantando-me e conferindo se eu não tinha quebrado nada. Contei ao Manoel que foi “bom” pois não bati nada no caminho ao chão. Disse-lhe sobre andar na cidade: que a cidade não me quer mais, que andei três quadras entre uma avenida central e uma pizzaria tradicional no centro, na qual comemos por bons tempos de juventude, caminho que fazíamos em 5 minutos e que demorei uns 40 minutos – uma aventura não muito legal. Cada dobra, oscilação, buraco e desnível no calçamento era como escalar uma montanha, atravessar a rua era como desviar do capeta; um esporte ou um desafio? Desrespeito.

A queda mais grave que sofri foi antes de dormir. Antes da minha (sua, nossa) reforma improvisei, com a ajuda do meu amigo (e pintor) Herberth Duarte, um quarto mais privado para meu sono. E tinha poucas tomadas. Guardei, com todo carinho e amor, um andador extremamente bom que meu irmão adquiriu, num rompante para melhorar sua locomoção. Sempre que ele comprava algo bom ou fazia algo legal e a gente o interpelava, ele dizia jocosamente: “Não fui eu, foi o ‘Rivotril’ pra dormir e o ‘Vanvensce’ para acordar”. Era minha hora de dormir. Ao lado da porta, a tomada; desliguei-a, com dois passos para trás alcançaria a cama, no meio do caminho me desequilibrei, tateei o que devia ser a cama, mas não havia cama, caí de costas, sem apoio para me proteger. E agora, José!? O ruim foi o resto, que não seria silêncio.

Bati a cabeça na perna de ferro do andador, que havia guardado, apesar de não ser a hora – como saber qual seria a hora? Como a cabeça é muito vascularizada e com pouca carne, bate e corta. Entre o supercílio e a “fonte” foi a batida, de madrugada, banhado de sangue, sem saber onde era e a profundidade do corte, descobri que o sangue jorra quente do corpo. Chamei meu pai, que por sorte estava acordado ajeitando o sono dos gatos. Logo que ele veio e ligou a luz, perguntei se era muito sangue e onde era — tinha medo de desmaiar e não ter mais como nada. A resposta: “Vixe Maria! É muito sangue. Toma aqui essa toalha”. O sangue lambeu minha face. Dos males, o menor: ele estava perto e me escutou. Descobrimos a origem do sangramento, fizemos o curativo, tomei um banho, vi que não ia morrer e dormi.

O certo seria finalizar o texto agora, mas vai mais um pouco.

Um amigo, escritor, nobre e, digamos, anarquicamente sem orientação política, convidou a mim, ao Manoel e a outro amigo, também escritor e, digamos, de direita, para jantarmos e bebermos uns copos. Estávamos lá, e uma moça toda bonita passou, nos cumprimentou, olhou fixamente, e ainda mais fixamente quando voltou à mesa. A gente a conhecia e já a achava linda. Nisso, o Manoel me levantou a bola: “Nós a conhecemos e nunca vimos ela trocar olhares como agora com você”. Eu disse: “Deve ser o charme da bengala”. Bebemos, rimos, comemos.

Manoel se levantou e foi pagar. Posterguei ao máximo e levantei para ir ao banheiro. Estava muito apertado e não fiz o passo-a-passo de se apoiar, levantar e se dirigir calmamente; a calçada muito irregular, minha perna mais fraca não me deu suporte, falhou e eu caí. Meu mano Brau mais alto não estava ao lado e por um átimo senti vergonha, como uma batalha gloriosa, os outros dois, também amigos, não tão íntimos e de cotidiano, foram tão prontos a me erguerem e normalizaram a situação que senti empatia e alegria por ter caído ali.

Depois fui contar que havia caído e que a parte ruim foi a moça ter me visto no chão e sendo levantado por amigos de orientação política duvidosa. Ao que o Manoel disse: “Para, Marcelo… você caiu e tem motivos. Pior se tivesse caído de bêbado…” Por mais que isso já tenha acontecido, raramente, é verdade.

Três vezes ao ano vou a um centro de excelência acompanhar a evolução da doença, eu disse ao médico: “Doutor, me preocupo e tenho muito cuidado para não cair. O senhor sabe, quando a gente cai a moral vai lá embaixo.” E ele: “A questão nem é moral, que você dorme e já passou. O problema é que machuca, quebra osso etc”.

Se me permite, um finale à la filósofo: Há que se cuidar da vida / Há que se cuidar do mundo / Tomar conta da amizade… / Há que se cuidar da mente / Que a questão moral não vire um machucado de osso quebrado / E que um osso quebrado não vire um machucado moral.

Nosso coração (é) de estudante.