Ao passo que a vida não obedece a parâmetros de nenhuma espécie, não se furta a subverter suas próprias regras e deixa estupefato o mais cínico dos homens com seus caprichos, tal como uma megera de maus bofes quando se decide por atazanar quem lhe negara um favor há muito tempo, o crime não vem perdurando desde que o mundo é mundo se não por um apego doido ao método, sem o qual não seria mais que barbárie e já teria consumido todas as almas que se lhe atravessassem o caminho. A inexpressividade marmórea de Statham, um rosto (e um corpo) já bastante conhecidos do público em enredos como este, realçam na medida o caráter eminentemente viril de “Carta Selvagem”.
O filme de Simon West fala a uma maldade em estado bruto, mas judiciosa, que eleva a violência essencial que existe em cada um de nós à condição de refinado mecanismo que nos permite continuar no jogo. A vida vai exigindo que tiremos muitos coelhos da cartola — muitas vezes ao mesmo tempo — para que não fiquemos a reboque de outras tantas circunstâncias que surgem-nos como desafios flagrantemente perigosos, em cuja essência estão mistérios quase indevassáveis que mesmo a nosso próprio espírito custa dissipar suas brumas.
O cinema mais ganha do que perde com figuras como Jason Statham, a exemplo do que crava o roteiro de William Goldman, baseado em seu livro. Existe um universo de críticos que não podem ouvir falar em Statham e tudo o que ele representa para o cinema, leia-se a indústria cinematográfica, sendo-se ainda mais detalhista, Hollywood. Esses são os que devotam seu ódio elitista a qualquer produto (e essa é a palavra mais ajustada aqui) que lembre minimamente narrativas em que um brucutu avança com socos e chutes mortais contra uma falange de outros marmanjos dados às fanfarronices que fazem incontestável seu sangue azul no reino do cinema macho por duas horas ou mais.
Como todo preconceito encerra escolhas, conscientes ou não nem tanto, os sabidos perdem boas chances de avaliar o expediente de se fazer um filme sob perspectivas inovadoras, o que também é parte de seu ofício. Definitivamente, eles não têm ideia do que estão perdendo. Para princípio de conversa, esses filmes são especialmente divertidos, e assim, sabem como poucos tocar o espectador em zonas muito íntimas, cinzentas, onde mal e bem misturam-se sem cerimônia; a partir desse fato, entende-se muito sobre como o mundo contemporâneo é como é. A forma mais fácil e decerto mais prazerosa de se compreender uma sociedade é tomando por análise suas manifestações artísticas, e aí Statham entra metendo o pé na porta.
A história de Goldman, sobre Nick Wild, um guarda-costas de Las Vegas que não passa sem baralho, roleta, caça-níqueis ou qualquer outra coisa em que possa afirmar uma masculinidade mais frágil que tóxica, revela uma pletora de nuanças quase geniais, a começar pela cena de abertura, quando é contratado para espancar o sujeito que quer que a personagem de Sofia Vergara o acompanhe numa brusca mudança de vida — pelo próprio pretendente da moça. Ele ganha quinhentos dólares pelo serviço e, claro, arruma mais encrenca, começando por pisar nos calos de Baby, o chefão da máfia de Nevada de Stanley Tucci, até, na iminência do desfecho, redimir-se pelas mãos de Cyrus Kinnick, um tipo meio delicado, quase uma entidade. A química de Statham e Michael Angarano responde por boa parte do delicioso caos de “Carta Selvagem”, mais um enredo sobre machões presas de seu temperamento explosivo, mas ao som de “Gambling Blues”, “o blues da jogatina” de Magic Slim (1937-2013), e “I’m Alive” (1968), de Gil Hamilton na voz de Johnny Thunder.
Filme: Carta Selvagem
Direção: Simon West
Ano: 2015
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 9/10