A gente existe é pra sentir

A gente existe é pra sentir

Amo a vida. Odeio a vida. A gente existe é pra sentir. Isso explica quase tudo. Não importa o sentimento. Ter saudade da infância. Ter vergonha dos deslizes. Decepcionar-se com um amigo. Invejar a paz alheia. Passar pelo desgosto de envelhecer e se tornar invisível. Estamos nesse mundo é pra sentir. Isso, em parte, mitiga o imenso vazio. A alegria de ter um bicho em casa. O contentamento de nada ser, de nada saber, ao explorar a lavra poética de um Fernando Pessoa. A vida é uma grande ilusão e outros chavões afins. Há que se ter em vista os indivíduos insensíveis para deles manter distância. A boçalidade é tóxica. É imprescindível sorrir. É inevitável sofrer. Os sentimentos negativos esperam sentados à sombra da felicidade. O que mais podemos fazer senão fruir? O orgulho de ser ético. O asco pelos canalhas. O senso de justiça social. A satisfação de um poder cumprido. Querer é meio caminho andado para o fracasso. Vida que segue. Eu rio de um fracasso quando corro para o mar. Com imenso despropósito, ainda escrevo um livro de autoajuda. Espero que eu o leia um dia. Estamos nesse mundo-velho-e-sem-porteira para sentir, não apenas nos valendo dos cinco órgãos sensitivos, mas, do intangível: a mente humana. A tristeza do luto. A comoção do parto. O desespero de beijar a lona. O desejo de evaporar. A compaixão por um suicida. A resiliência de começar do zero. O prazer da exploração sensorial de outro corpo humano. O embaraço de um novo amor. A gente existe é pra sentir. Entusiasmar-se com a solidão. Alegrar-se pela meta atingida. Amar um filho. Frustrar-se por não deixar semente. Malquerer um estranho. Descontentar-se com Deus. Ter confiança o bastante para não se enquadrar. Gozar o orgulho de ser honesto. Sentir prazer ao caminhar pelos imbricados caminhos da vida sem ter que apresentar documentos para a solidão. Na média, somos tristes e exigentes. Bem ou mal, isso não elimina os demais sentimentos; os bons, em particular. Ainda estamos aqui. Não somos feitos de pedra, mas, de versos. O medo de ser morto. O nojo de ser mártir. A esperança plena ligada no 220. A felicidade, enfim, sempre dentro dos planos.