Para o bem e para o mal, para desespero de reacionários e júbilo de falsos messias, a inteligência artificial instalou-se com todos os seus bits em todos os lugares, e não vai mais embora. Até aí, morreu o Neves; o problema mesmo é pensar que a IA é capaz de suprir as muitíssimas carências da alma humana — e ainda que fosse, qual a necessidade e a conveniência disso, para não falar de detalhes à primeira vista insignificantes, mas fundamentais, como elegância e decoro, e artigos ainda mais escassos nas relações, cuja falta pode acabar em processo ou cadeia, leia-se invasão de privacidade, injúria, calúnia, difamação e segue por aí. Apetrechos tecnológicos são um fetiche cheio de possibilidades, em especial para artistas, e em se tratando de cineastas asiáticos, o céu é o limite, com a licença do trocadilho. Em “Wonderland”, a ficção científica permeada de lirismo do sul-coreano Kim Tae-yong, um dispositivo ajuda a aplacar a saudade de gente separada por dois mundos, mas a pergunta matadora com que o diretor fustiga a audiência é: vale a pena?
Só depois que se chega à morte é que se sabe como a vida faz falta. Kim elabora a premissa em várias frentes, começando por delinear o relacionamento de duas personagens centrais com afetos de quem foram obrigadas a se separar. A arqueóloga Bai Li parece ainda estar neste plano, mas há algum tempo sucumbiu a uma doença terminal, e só não fica completamente apartada da filha pequena graças à assinatura do serviço oferecido pela empresa que dá título ao longa. Ao passo que aprofunda-se no cotidiano de Bai Li, o diretor e a corroteirista Min Ye-ji entram também na intimidade também devastadora de Jung-in, que mantém correspondência diária com Tae-ju, o namorado que pensa estar numa missão espacial, mas definha num leito de hospital, em coma irreversível. Kim usa com parcimônia as sugestivas imagens de alguém que revolve os intestinos do solo à procura de lembranças da própria existência, no primeiro caso, e de uma mulher ainda mais perdida, vendo num homem a centenas de milhares de quilômetros o amor não pode mais consumar. Cada qual a seu tempo, Tang Wei, Bae Suzy e Park Bo-gum manifestam as emoções mais e mais contraditórias dessas pessoas, e se tem mesmo a sensação de estarmos em dimensões paralelas, eles e nós. A inteligência artificial nos poderia suprir também esse luxo e acabar com a vitória sempre certa da morte? Acho que nunca saberemos, e é, honestamente, não quero usufruir dessa falsa maravilha.
Filme: Wonderland
Direção: Kim Tae-yong
Ano: 2024
Gêneros: Ficção científica/Romance
Nota: 9/10