Miguel de Unamuno (1864-1936), o ensaísta espanhol, certa vez afirmou que a vida é, em sua essência, um processo de esquecimento. Somos compelidos a selecionar o que desejamos lembrar, quais momentos dolorosos de nossa trajetória precisam ser varridos para o recôndito da memória, e quais eventos merecem ocupar um espaço destacado em nossas recordações.
O filme “Mademoiselle Vingança”, de Emmanuel Mouret, é uma livre adaptação do romance iluminista “Jacques, o Fatalista, e Seu Amo” (1778) de Denis Diderot (1713-1784). A obra aborda a vida de uma mulher à frente de seu tempo, ambientada em uma época em que conceitos como feminismo, empoderamento e liberdade de expressão eram apenas utopias distantes para mulheres que viviam em uma posição social subjugada.
Este enredo sobre aristocratas entediados, que encontravam diversão em adultérios e intrigas emocionais no século 18, evoca inevitavelmente outro clássico da literatura francesa do mesmo período, reforçando a crítica à elite da época, oculta sob sedas e penteados exuberantes. Anne Bochon, responsável pelo meticuloso trabalho de reconstituição de moda, valoriza este aspecto no filme.
Sem a presença de internet ou redes sociais, os aristocratas da época lidavam com o tédio através de intrigas, como se vê em “Ligações Perigosas” (1782) de Choderlos de Laclos (1741-1803). Esta obra foi modernizada em produções contemporâneas como “Segundas Intenções” (1999) de Roger Kumble e “Justiceiras” (2022) de Jennifer Kaytin Robinson. No filme, Madame de La Pommeraye, interpretada por Cécile de France, é uma viúva rica que, embora envelhecida, ainda mantém sua beleza. Ela se afasta da corte do rei Luís 15 (1710-1774) para viver em uma luxuosa propriedade rural.
Cécile de France entrega uma performance que captura a complexidade da personagem, que inicialmente se apresenta como uma mulher confortável, mas quase paranoica em sua autoproteção, devido a experiências passadas traumáticas. Resistindo às investidas do marquês d’Arcis, interpretado por Edouard Baer, ela eventualmente cede. Baer encarna o típico sedutor, semelhante ao Sébastien Valmont de Laclos, manipulando vulnerabilidades, especialmente as das mulheres.
Conforme a trama avança, o marquês prolonga sua estada na propriedade da Madame de La Pommeraye, que, acreditando na transformação do homem, cede a seus encantos. No terceiro ato, Mouret reúne personagens que trazem uma conclusão dramática ao roteiro, sempre fiel ao espírito de Diderot. A entrada de Madame de Joncquieres, interpretada por Natalia Dontcheva, e sua filha, a Mademoiselle de Joncquieres, vivida por Alice Isaaz, intensifica o enredo.
Madame de Joncquieres, uma mulher outrora digna, mas desgraçada ao engravidar de um nobre que a abandonou, assim como o marquês fez com Madame de La Pommeraye, adiciona uma camada de vingança à história. A Mademoiselle de Joncquieres, personagem central, leva a narrativa a seu clímax, mantendo o ar de folhetim setecentista.
“Mademoiselle Vingança”, na Netflix, encerra com reviravoltas e a mesma intensidade apresentada no início, sem que os personagens secundários percam sua relevância. Embora alguns críticos afirmem que narrativas desse tipo estão ultrapassadas e “envelhecem mal”, o cotidiano contemporâneo continua a refutá-los.
Filme: Mademoiselle Vingança
Direção: Emmanuel Mouret
Ano: 2018
Gênero: Drama/Romance
Nota: 8/10