Último filme de Juliette Binoche chega ao Prime Video e vai fazer você querer ficar em casa para assisti-lo Divulgação/ Diamond Filmes

Último filme de Juliette Binoche chega ao Prime Video e vai fazer você querer ficar em casa para assisti-lo

Amor e comida sempre estiveram unidos num abraço insano, mais do que muita gente reconhece. Durante a longa introdução de “O Sabor da Vida”, essa imagem vai deixando a bruma opaca das sensações e desce para o plano das ideias, até que se assenhore de cada espaço, de cada fresta, de tudo quanto antes era instável e duvidoso. Ao longo de 38 minutos, o vietnamita Tran Anh Hung mostra a silenciosa atração entre um gastrônomo francês, atividade que precedeu os chefs premiados de hoje, e sua talentosa cozinheira, uma artista que parece flutuar por sobre panelas e caldeirões, descascando legumes, destrinchando marrecos e temperando vitelas como se dissesse poemas de Victor Hugo (1802-1885) ou estrelasse uma comédia de Molière (1622-1673). Adaptado do romance “A Vida e a Paixão de Dodin Bouffant, Gourmet” (1920), o roteiro de Tran é fiel ao espírito de liberdade absoluta que vibra na pena do suíço Marcel Rouff (1877-1936), por onde se chega ao epicurista apaixonado do título original, e Eugénie, sua parceira de mesa e cama.

Nenhuma evidência comprova a evolução do homo sapiens de forma mais assertiva do que uma ida ao mais prosaico restaurante de autoatendimento, os populares self-services. Se há duzentos mil anos a variação do hominídeo mais próxima do homem moderno como o conhecemos, não suportando mais basear sua dieta em frutos, larvas e, nos períodos de grandes chuvas, peixes e moluscos dos mares e rios, passou a arriscar-se com lanças, tacapes e machados atrás de cervos, javalis e mamutes, “decisão” fundamental para que, pelos dois mil séculos que se seguiram, atingisse o desenvolvimento cognitivo que o capacitou a inventar ferramentas, máquinas e veículos e se dedicasse ao aperfeiçoamento de serviços que poupam-lhe tempo e energia. Alimentar-se já foi bem mais difícil, e embora o diretor-roteirista pare no fim do século 19, fica cada vez mais evidente a interferência da comida nas relações sociais, públicas ou as que se dão entre quatro paredes. 

Bouffant e Eugénie preparam um banquete para amigos do anfitrião, sem nunca deixar o que sentem um pelo outro sobrepor-se à hierarquia inflexível da cozinha, essencial para que tudo ande comme il faut. À medida que os pratos saem, relaxam, cada qual a seu modo, e embora apenas o chef prive da companhia dos convidados, a serva também toma parte no festim, provando de todas as iguarias e as partilhando com suas assistentes. Benoît Magimel e Juliette Binoche dominam o filme numa química admirável, e de quando em quando Violette e Pauline, de Galatéa Bellugi e Bonnie Chagneau-Ravoire, surgem em momentos pensados para elas. Pauline, a sobrinha de Violette, parece a emular Eugénie de forma inconsciente e perfeita, decifrando a composição do molho bourguignon ou escondendo as lágrimas ao degustar a omelette norvégienne.

Nunca sabe como Bouffant e Eugénie se encontraram, porém a justificativa da recusa da cozinheira aos insistentes clamores do chef para que casem-se afinal são uma resposta direta e algo estudada ao medo de acabar como uma esposa qualquer, sem o direito de trancar a porta de seus aposentos quando desejasse simplesmente dormir. No terceiro ato, meio a contragosto, depois de um suntuoso jantar romântico preparado por Bouffant, ela cede, e com uma reprimenda do destino à traição de sua própria natureza, sua saúde degringola. Binoche capta e transmite a agonia de sua personagem, e partir desse ponto, a figura de Pauline é mais notada, como se “O Sabor da Vida” fosse enveredar para uma leitura mais suave de “A Criada” (2016), de Park Chan-wook. Felizmente, Tran não faz concessões à soluções fáceis, e este seu filme, delicado, surpreendente, lírico, permanece como um registro dos amores que duram o que precisam durar. Por muitos outonos.


Filme: O Sabor da Vida
Direção: Tran Anh Hung
Ano: 2023
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 10