O ser humano é essencialmente preguiçoso. Não chega a surpreender, então, a reação da maioria das pessoas, incluindo jornalistas, diante da maior canalhice do século 21, o chamado programa Mais Médicos
“Os homens, em geral, julgam mais com a vista do que com o tato; eis que ver é dado a todos, sentir, a poucos. Todos veem o que pareces ser, poucos veem o que és. E estes poucos não ousam se opor aos muitos que contam com a majestade do Estado para sua defesa.” Maquiavel, “O Príncipe”.
Adoro esta passagem de “O Príncipe”. Diz tudo. O ser humano é isso aí. Pensar, ruminar, refletir, ir atrás das causas, procurar enxergar mais adiante dá trabalho. E o ser humano é essencialmente preguiçoso. Não chega a surpreender, então, a reação da maioria das pessoas, incluindo jornalistas, diante da maior canalhice do século 21, o chamado programa Mais Médicos.
Me apontem uma única categoria profissional, umazinha só, que aceitasse calada um governo botar a culpa nela (e só nela) da ineficácia de seu serviço prestado, decidindo tomar várias atitudes que a envolvem sem consultar uma única entidade representativa. E mais ainda, desprezando as iniciativas já em curso (no caso, a proposta de lei para carreira no SUS). Os professores, dentistas, engenheiros, veterinários, advogados, juízes, promotores, metalúrgicos aceitariam caladinhos o governo jogar a culpa neles e em seguida adotar medidas goela abaixo? Aceitariam o governo dizer: “A educação no país está uma droga por causa dos professores”. Próximo passo: “Vamos aumentar o curso de pedagogia em dois anos (sem chamar um único reitor)”; “Vamos oferecer bolsas sem direitos trabalhistas e, se ninguém topar, traremos professores de Cuba”. Ou ainda: “Juízes, promotores e procuradores custam caro demais, além de terem a aberração dos dois meses de férias”. Próximo passo: “Vamos enviar juízes e promotores para os locais ermos do Brasil com bolsas no lugar de salários, sem carreira e sem direitos trabalhistas”. Enfim, pegue qualquer categoria e faça igual. Aceitaria calada? Se você não for um baita hipócrita concordará que não, claro que não. Nenhuma categoria aceitaria calada as arbitrariedades impostas a toda a classe médica no momento. Mas nós, o que somos? Arrogantes, prepotentes, nos achamos deuses e por aí vai.
A verdade é que os médicos somos, antes de tudo, burros. Muito burros. Fizemos exatamente o que a canalhada federal queria. Fizemos greve, dando oportunidade pros jornais documentarem pacientes que haviam marcado sua consulta há meses e tendo de remarcar. Dizemos para os colegas não atenderem os erros e complicações dos cubanos. Recebemos, vestindo nossos jalecos brancos e com gritos raivosos, os colegas estrangeiros, no aeroporto. E aqui cabe uma observação importante. O jaleco, nessa história, funcionou apenas como funciona sempre, um identificador de categoria. Classe diferenciada? Caramba, tem de ser muito alienado e ignorar as verdadeiras condições dos servidores públicos médicos pra dizer uma barbaridade dessas. Notem que faço questão de escrever “servidor público médico”, pois estamos tratando do SUS. É claro que há médicos que ganham fortunas. Os que servem à presidente Dilma e ao ex- presidente Lula, por exemplo.
Aquele bando de estúpidos gritando no aeroporto não fez besteira por estar ali de jaleco branco, um detalhe que só se presta a exploração da imagem (ou seja, a casca do problema). Eles poderiam estar vestidos de zebra, de camisola, de fantasia de carnaval que a essência seria a mesma. Estavam agredindo quem não merece e dando pano pra manga para cafajestada federal.
E essa cafajestada, que tem a cumplicidade da maioria da imprensa e, aparentemente, dos cidadãos brasileiros, um dia vai cobrar seu preço. Senão vejamos. Tente se despir de seus preconceitos, recalques e ressentimentos e procure enxergar um pouco mais adiante. Proponho um exercício mental. Primeiro, se você for honesto, concordará comigo que a proporção de canalhas na classe médica é estatisticamente semelhante à proporção de canalhas na classe jornalística, jurídica, de engenheiros, etc, ou seja, uma minoria. Nessa primeira hipótese, o que está sendo feito pelo governo federal é, além de injusto a toda uma classe, pois lhe nega o direito a uma carreira decente no SUS, também danoso aos pacientes, a quem é negada a oportunidade de serem servidos por servidores públicos médicos de carreira, com garantias trabalhistas, etc.
Mas vou propor um segundo exercício. Vamos supor que a classe médica seja diferente de todas as outras e seja composta em sua totalidade por canalhas. Nesse caso, para quem enxerga só a casca e menos de um palmo de futuro à frente, a melhor opção é importar médicos. Mas aí vem a pergunta óbvia: até quando? Ora, se a solução achada para um problema é fugir dele, tenho de fugir por toda vida, correndo o risco de um dia ser obrigado a enfrentá-lo, quando, então, estará muito maior. Em outras palavras, se as faculdades de medicina no Brasil só cospem canalhas, eu preciso encontrar uma solução para consertar isso, senão tenho de acabar com todas e importar estrangeiros para todo sempre.
A não ser que você seja como o padre raivoso que tem publicado cartas rancorosas contra médicos no jornal “O Popular”, ou seja, a não ser que você tenha algo pessoal contra médicos, você, no fundo, concordará que a primeira opção é mais crível. Do que se depreende que o que está sendo feito pelo governo federal, com a cumplicidade de boa parte da imprensa, é um crime, que terá consequências, num futuro de médio a longo prazo, imprevisíveis.
Enquanto isso, a ninguém ocorre perguntar: e o plano de carreira para profissionais de saúde no SUS, por que, diabos, nunca é mencionado pelo governo nem pela imprensa? O motivo do governo pode-se supor: sai mais barato (muito mais) propor bolsa a estrangeiros. Mas e a imprensa?