Há muitos problemas em “O Homem Com Mil Filhos”, inúmeros, todos graves, e todos os personagens da história têm sua parte neles. O documentário de Josh Allott, uma daquelas tramas absurdas, que só mesmo a vida consegue escrever, tenta apresentar com o máximo de detalhes que pode um homem valendo-se da lei para cometer irregularidades que definem a vida não de um ou dois indivíduos, mas, em estando certas as estimativas de Allott e em sendo confiáveis suas fontes, mais de um milhar de pessoas — e aí os problemas iniciais degringolam em questões ainda mais cheias de nuanças.
Jonathan Meijer, um holandês agora com 43 anos, teria aceitado ser o doador espontâneo de, oficialmente, 24 casais e uma mãe solo, sem que ninguém, nem ele nem seus beneficiários, fizessem comunicação alguma a médicos ou a autoridades sanitárias. Perfeito, cada um sabe onde lhe dói o sapato e o poder público não tem de meter o bedelho na intimidade de quem quer que seja. Como já se poderia antever, Meijer não respeitou a determinação e extrapolou as 25 famílias, ao passo que aqueles que buscaram seus “serviços” acharam muito natural fazer tudo por debaixo dos panos, julgando ter “tirado a sorte grande”. Resultado: crianças traumatizadas ou no mínimo desnecessariamente vulneráveis, que pensam que o mundo está sempre a dever-lhes alguma coisa.
No primeiro episódio, algumas das “vítimas” de Meijer falam de suas carências existenciais e do desejo de aplacá-las com a chegada de um filho, custe o que custar. Natalie e Suzanne, um casal homoafetivo de Roterdã, dizem sem meias palavras que ficaram muito bem-impressionadas com os fartos cabelos em ondas e os dentes brancos de Meijer — na verdade, uma piaçava que clama por hidratação e um sorriso bastante desalinhado. Natalie, a parceira que tomou a frente das negociações, vai além e diz que teve “medo” do candidato anterior, que além de não parecer-se em nada com as fotos que enviara (sim, elas exigiram fotos), ostentava uma imensa cicatriz de orelha a orelha na nuca, o que a teria feito suspeitar sabe Deus de quê. Quando se depararam com o príncipe dos Países Baixos, talvez a própria encarnação da magia do Parque Efteling, renderam-se-lhe à fala macia, e ao cabo de nove meses, ou “bingo”.
O diretor formaliza a denúncia contra Meijer, numa espécie de tribunal de exceção com que as redes sociais refestelam-se, chamando Nicolette, uma mãe solo também lésbica, que fundou um grupo em que possíveis cúmplices do doador se expunham sem cerimônia, exigindo sua captura e o consequente julgamento do caso na Holanda, o que de fato aconteceu. Caso Meijer concorde em ceder seu esperma outra vez, ainda que com a aquiescência ou mesmo diante da súplica de pais faltos de rebentos, terá de se ver com uma multa de cem mil euros em cada procedimento. Jamais se fala em punição para quem receber sua semente de falso messias.
“O Homem Com Mil Filhos” menciona a atuação de Meijer como dono de um canal no YouTube, por meio do qual arrecadaria fundos para viajar da Holanda para Quênia, Austrália, Estados Unidos, Itália, mas também furta-se a uma discussão sobre atropelo de liberdades individuais, ética e ordenamento jurídico na medida em que os casais fazem suas escolhas muito idiossincrásicas ao arrepio da lei. Ajudados, para não variar, pelo politicamente correto, sempre ávido por um copo de sangue.
Filme: O Homem Com Mil Filhos
Direção: Josh Allott
Ano: 2024
Gêneros: Documentário/Policial
Nota: 7/10