Os casamentos de Jane Austen

Os casamentos de Jane Austen

A Inglaterra jamais foi ilha por acaso. A Europa pode estar se acabando em conflitos, mas os ingleses não se misturam aos “continentais”. Imagina se você é um artista europeu na virada do século 18 para o 19. Foi uma época rica de acontecimentos e ideias, não? Apesar disso, um inglês da época prefere ignorar a Revolução Francesa e as guerras napoleônicas. Russos e alemães, por sua vez, escreveram e filosofaram fartamente a partir das transformações provocadas pelos franceses. 

A escritora Jane Austen (1775-1817) fez a opção bem inglesa de dar de ombros, ao longo de sua vida, para o que ocorria do outro lado do Canal da Mancha. Viveu apenas 42 anos. Porém, colocou toda a genialidade para explorar o mundinho da região central da ilha britânica e os arredores de Londres — o centro da economia global de sua época. Criou uma literatura que reverbera até os dias de hoje. E o cinema que o diga, pois jamais viveria sem as histórias de Austen.  

Ela publicou quatro obras-primas: “Razão e Sensibilidade” (1808), “Orgulho e Preconceito” (1813), “Mansfield Park” (1814) e “Emma” (1815). Postumamente, saíram em 1818 os romances “Abadia de Northanger” e “Persuasão”. Quatro desses seis livros se passam tão somente entre as cidades de Londres e Bath. Mais especificamente, são histórias nos condados que são as regiões administrativas criadas séculos atrás e que até hoje estruturam o país. 

O segredo de Austen, segundo o crítico Franco Moretti, é usar os enredos de casamentos como a união dos condados, para consolidar o país como visto hoje. Trata-se de um “mercado nacional de matrimônios”, no qual as famílias vizinhas nos condados organizam o matrimônio dos filhos. Em “Orgulho e Preconceito”, por exemplo, os Bennets locais se juntam ao espírito nacional de Darcy, criando uma lealdade e união do espírito inglês que cria a nação moderna.

“Os enredos de Austen juntam — ‘casam’— as pessoas que pertencem a condados diferentes. O que é novo e significativo: significa que esses romances tentam representar o que os historiadores sociais referem como o ‘Mercado Nacional do Casamento’: um mecanismo que se cristalizou ao longo do século 18, o que exige dos seres humanos (particularmente das mulheres) uma nova modalidade: física, mas ainda mais espiritual. Porque é claro que um grande mercado de casamentos só pode funcionar se as mulheres se sentirem ‘em casa’”, analisou Moretti. 

É um mundo pequeno geograficamente onde personagens não viajam. Nem mesmo ideias europeias viajaram para lá — ao contrário do que acontece no romance russo de Dostoievski (“Os Demônios”), Tolstói (“Guerra e Paz”) e Ivan Turguêniev (“Pais e Filhos”). A vida fora da ilha só aparece de relance em “Mansfield Park”, no qual os negócios coloniais no Caribe sustentam a vida de sir Thomas Bertram.

Sem os romances de Austen, não haveria comédia romântica do cinema ou telenovela das 18h no Brasil. Em 2018, a telenovela “Orgulho e Paixão” adaptou cinco obras dela para o contexto brasileiro. Jane Austen criou um “mercado de casamentos” com paixões, escândalos, calúnias, seduções, fugas e desgraças — tendo personagens alpinistas sociais, parentes de reputação duvidosa, especuladores, sedutores e aristocratas decadentes. Enxergou uma galera de figuras humanas da nascente Inglaterra moderna.