Para ver, rever e se emocionar: o filme mais bonito de Eduardo Coutinho (e um dos mais belos do cinema nacional) está na Netflix Divulgação / VideoFilmes

Para ver, rever e se emocionar: o filme mais bonito de Eduardo Coutinho (e um dos mais belos do cinema nacional) está na Netflix

Sempre que sou instado a emitir opinião sobre a obra de Eduardo Coutinho (1933-2014), renova-se minha pouca (e cada vez mais rala) fé na humanidade — um paradoxo e um despautério quando volta à lembrança o desfecho brutal e injusto de sua vida, mas falemos disso mais tarde, se for o caso. Coutinho, o mago da vida como ela é, transforma cenas banais em poesia da boa, da melhor, ao selecionar um coro de mezzosopranos, contraltos e tenores, anônimos ou quase famosos, afinados ou nem tanto, em “As Canções”. 

Como também fizera em “Edifício Master” (2002), “Jogo de Cena” (2007), “Cabra Marcado Para Morrer” (1984), e outras duas dezenas e meia de trabalhos em que leva o espectador a redescobrir-se por meio da história de gente que nunca há de conhecer, saindo da crítica de costumes para o teatro e daí para a política, aqui Coutinho seleciona um elenco primoroso, como se pensado para nos fazer rir, chorar, relembrar outros tempos e, o principal, filosofar sobre as miudezas que fazem toda a diferença no frenesi mais e mais insano da vida.

Ter-se por superior que a maioria das pessoas comuns que enchem o mundo com sua parvidade megalômana; seus arroubos de falsa modéstia, muito bem disfarçada de caridade, simpatia, empatia ou qualquer outro bom sentimento, miseravelmente conspurcado pelo lodo da hipocrisia; seu dom quase cartesiano de encaminhar os acontecimentos ao sabor das conveniências da hora, não é, claro, o que se pode definir por vantagem. Contudo, é justamente asfixiada por essa onipresente sensação de um vazio incansável que a maior parte das pessoas crê no absurdo de que tudo pode ser incluído na conta do talento, atributo sobrenatural com que a natureza, injusta, elitista e cruel, regala poucos, pouquíssimos. 

Encontrar essa substância mágica que nos dá a chance de que nos elevemos do chão do banal, do ordinário, da condição humana mesma e nos recubramos de uma aura mística qualquer, não exatamente metafísica, nem muito menos transcendental, mas enérgica o bastante para nos fazer subir do estado de vis pecadores para um híbrido de santo, feiticeiro e mártir, que arrebanha, catequiza e encanta multidões, não sem boa dose de um fanatismo obscurantista, muito a propósito dos dias ignaros que correm.

A mágica de Coutinho é justamente essa: fazer com que cada um tenha a certeza de que é um só no mundo, de que cada mulher e cada homem é uma estrela, a exemplo do que cantou Raul. Decerto a mais bela voz dessa seleção de astros, Dea Franco, revelada no programa de calouros de Ary Barroso (1903-1964), abre com “Último Desejo” (1937), de Noel Rosa (1910-1937) e Vadico (1910-1962), e logo também se animam a mulher que perdoa as traições do marido, o homem simples que só ousa se fazer ouvir no roçado, a cadeirante viúva que lembra do companheiro todo dia, nem que seja por um verso. Em comum, esses personagens encantadores ostentam suas vidas mesmas, tão horrendas e tão belas. Com método e sentimento, Coutinho as transformava em estrelas de cinema. E isso faz falta.


Filme: As Canções
Direção: Eduardo Coutinho 
Ano: 2011
Gêneros: Documentário/Musical/Romance
Nota: 10