Última chance na Netflix: dedique 2 horas a um dos filmes mais belos que já passaram pela plataforma Divulgação / Synapse Distribution

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Há quem tenha de deixar sua terra e sua essência para fazer sucesso. Antonia LouisaBrico (1902-1989) teve de renunciar à própria identidade para chegar aonde merecia, e no lugar da sensação de um invencível alheamento colocou uma fibra e o quase mágico domínio sobre si mesma, até que se convencesse de que poderia convencer os outros de seu talento. Parte da jornada de luta e superação de Brico, uma holandesa radicada nos Estados Unidos depois de um grave episódio de desagregação familiar, descortina-se em camadas plenas de líricas e cruciantes minudências em “Antonia: Uma Sinfonia”, em que a diretora Maria Peters mistura notas biográficas romanceadas e uma crítica arguta à sociedade xenófoba e misógina dos anos 1920 para chegar ao mais fundo da alma da protagonista, uma mulher tida por ousada apenas porque não se deixava levar pelo que quisessem pensar a seu respeito. Sofisticado, o texto de Peters segue Bricoprimeiro em suas andanças por Nova York, juntando dinheiro como faz-tudo de um teatro, até sua peregrinação por bares suspeitos de Lower Manhattan, onde arranja emprego como pianista, até sua inserção quase fortuita nas altas rodas, detalhando ainda seu êxodo, de país, de continente, de mundo, sem dúvida a grande reviravolta numa inigualável história de vida.

Peters leva seu filme para 1926, quando Brico defende algum dinheiro como lanterninha e bilheteira numa casa de espetáculos, onde não se furta a trazer uma cadeira do almoxarifado e sentar-se na primeira fila e assistir ao concerto do compatriota Willem Mengelberg (1871-1951), figura ambivalente que poderia ter sido para ela o atalho para uma metamorfose ainda mais vibrante, não fosse a pressão social que os cercava a todos. Christiane de Bruijn transita por entre esses muitos universos paralelos, dos salões da elite americana, milionária e culta, para o apartamento de paredes finas em que Bricomora com os pais, interpretados por AnnetMahlerbe e Raymond Thiry, equilibrando-se da altivez para uma quase vulgaridade, perfeitamente capaz de fazer com que sua personagem molde-se ao ambiente, menos por gentileza que por instinto de sobrevivência. Nesse segmento, a diretora-roteirista desvenda não o grande segredo de Brico, mas aquele que conduz o longa para um segundo ato ainda mais frenético, em que Mengelberg volta a seu círculo mais próximo, trazendo consigo o grupo de aristocratas que também passam a fazer parte de seu cotidiano. Embora meio fugazes, as cenas com De Bruijn e GijsScholten van Aschat são um pequeno deleite, que por seu turno possibilitam à narrativa abordar o romance de Brico e Frank Thomsen, o ricaço que conhecera na noite da apresentação de Mengelberg — e que a enxotara. Como acontece com Van Aschat, a afinidade da protagonista com Benjamin Wainwright torna os 137 minutos de projeção impressionantemente fluidos, sem prejuízo da natureza eminentemente acidentada da trajetória de Brico, agora a pianista da boate de Robin Jones, de Scott Turner Schofield, que também guarda seus mistérios. 

No desfecho, após o vaivém de emoções acerca da intimidade da biografada, Petersressalta sua importância para música erudita, e sabe-se enfim que Antonia Bricotornou-se mundialmente famosa e reconhecida ao ser a primeira regente mulher de uma orquestra, a Filarmônica de Berlim — e que, para tal, não pôde nunca descuidar da formação acadêmica, obsessão de que um homem com o seu talento talvez não precisasse —, além de ter se tornado a maestrina da Orquestra Sinfônica das Mulheres, depois batizada Orquestra Sinfônica Brico. Por uma cruel ironia, a Orquestra Sinfônica Brico acabou justamente no momento em que passou a também admitir homens. Acorde dissonante na vida de uma mulher que foi a própria encarnação do discurso a favor da igualdade de gêneros.


Filme: Antonia: Uma Sinfonia
Direção: Maria Peters
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.