Não é de hoje que os indianos dão lições à humanidade. Na década de 1860, Karsandas Mulji (1832-1871), um jornalista de Gujarate, no extremo oeste da Índia, formado em Elphinstone, uma das mais prestigiosas universidades do país, começa a questionar certos rituais do vaishnavismo, corrente hinduísta que atribui também a Krishna a natureza divinal, como fazem outras confissões para com Rama e Vishnu. Malgrado tivesse motivações estritamente pessoais para o fazer, Mulji fora desde sempre um crítico acerbo à cegueira dos fiéis diante de autoridades religiosas tidas como a encarnação do próprio Deus e um entusiasta da doutrina cristã, cujo talento para a leitura de sermões espalhava sua fama por todo o subcontinente.
Esses dois predicados acabaram por lhe valer a perseguição de uma elite convenientemente habituada a mordomias de que não abririam mão sem resistência e um jogo pesado de conchavos e injúrias, o que por seu turno deu azo a uma enxurrada de processos na justiça e uma luta pioneira pelas liberdades individuais num cenário que já prenunciava certas posturas arbitrárias e criminosas. Em “O Rei do Povo”, Siddharth P. Malhotra faz um recorte generoso da vida de Mulji, amparado por “Maharaj”, o romance do escritor e jornalista indiano Saurabh Shah publicado em 2014, cujo título alude a Nisargadatta Maharaj (1897-1981), o guru não-dualista nascido Maruti Shivrampant Kambli. Os roteiristas Sneha Desai, Vipul Mehta e Kausar Munir tratam de desfazer possíveis mal-entendidos expondo as duas faces da história, um embate de luzes e sombras com o colorido que se espera de Bollywood.
Vez ou outra, a indústria cinematográfica da Índia solta uma lufada de ar fresco e sustenta enredos verdadeiramente novos, sobretudo para ocidentais triturados pelo ramerrão de nossas próprias misérias. A sonoridade e o ritmo de frenético de “O Rei do Povo” não chegam a entediar a audiência ou comprometer o andamento da narrativa — a exemplo do que ocorre com frequência incontornável em produções da Índia —, dominando tudo de tal modo que não se tenha muito claro o propósito de tudo aquilo. No caso do filme de Malhotra, o tumulto proposital da introdução presta-se a explicar o porquê de Mulji questionar tudo, e o filme dedica boa parte de seus 131 minutos a um primeiro ato meio excessivo, centrado na infância do protagonista.
O diretor retrocede a 1832, quando Mulji, ainda em tenra idade, já exibe provas de sua curiosidade e inteligência acima da média, e logo avança uma década, quando o garoto aparece melancólico, mas conformado, no funeral da mãe. A história começa mesmo década e meia mais tarde; Malhotra neste ponto assume um lado e parece um tanto encantado demais com o Mulji jornalista, no comando do “Satya Prakash”, a gazeta de Bombaim que circulou de 1855 a 1861. Junaid Khan é hábil ao deixar que transpareça uma e outra insegurança de seu personagem em adulto, duelando com Maharaj — aqui chamado de J.J. para se evitar ações judiciais — para livrar a sociedade do domínio mental do guru, que Jaideep Ahlawat deixa saborosamente repulsivo.
Filme: O Rei do Povo
Direção: Siddharth P. Malhotra
Ano: 2024
Gênero: Drama/Policial/Biografia
Nota: 8/10