Fábula do fim do mundo

Fábula do fim do mundo

Após ter sido acusado de fascista por uma escrevedeira-da-lapónia que gorjeava hinos de libertação nas imediações dos destroços ferruginosos da Torre Eiffel, um pastor-alemão decidiu caçar porquinhos-da-índia na floresta para espairecer a mente, além de matar a própria fome. Mais do que nunca, vigorava a lei do mais forte. O pastor-alemão passava por momentos de fraqueza, sentia uma saudade fidedigna dos antigos donos — agora, depositados dentro de uma sacola de ossos — e andava sobre as quatro patas com a cabecinha tomada por demônios-da-tasmânia e outros pensamentos vis que ainda resistiam após anos de convivência com seres humanos de comportamento desumano.

Escondido atrás de uma moita de flores em Vétheuil, a oeste de Paris, às margens do rio Sena, ele sacou da cintura um peixe-espada com o qual tencionava arpoar uma indefesa vítima que roía raízes de um arbusto, quando foi atacado pelas costas por um tigre-de-bengala que claudicava faminto, depois de ter escapulido de um circo de horrores onde os últimos homens ímpios sobre a face da Terra tinham reacendido as velas da esperança, usando fagulhas de ódio dos remotos tempos de guerra entre as nações.

Dias depois, a ossada pestilenta do pastor-alemão foi encontrada por um peneireiro-euroasiático que chilreava pelo bosque, enquanto passeava na companhia de um setter-irlandês de pelagem marrom. O perspicaz peneireiro-euroasiático notou que havia uma suástica bordada com fios-de-sangue no couro seco da carniça, cuja caveira jazia sorridente e estática, como se sentisse as cócegas permanentes de uma hiena-listrada. Protetor inveterado da natureza, o peneireiro-euroasiático solicitou o auxílio de um urso-de-óculos que lia o livro “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell, sentado sobre um cupinzeiro, para juntos enterrarem o esqueleto do falecido canídeo numa cova profunda o bastante para que a sua ossada tristonha não fosse farejada, cavoucada e, muito menos, roída por castores-americanos e mangustos-da-libéria que haviam migrado para aquela região aprazível, desde o fim da humanidade.

Um veado-vermelho-da-sardênia que se banhava num antigo rio de sangue enxaguava a rola-das-antilhas na corredeira quando foi surpreendido pelo peneireiro-euroasiático, pelo setter-irlandês e pelo seu novo amigo, o sábio urso-de-óculos. “Cuidado com os candirus. Eles costumam penetrar pelo canal da urina dos banhistas”, advertiu com perspicácia o urso-de-óculos. Todos riram desbragadamente, inclusive um bando de surucuás-haitianos e de grous-da-manchúria que dormitavam num frondoso carvalho que resistira por milagre ao limo do machado e ao ronco dos tratores.

O quarteto construiu uma sólida amizade e combinou de assistir ao show aquático dos golfinhos-do-ganges e das focas-monges-do-mediterrâneo que estavam de passagem pelas plagas francesas despovoadas de gente. As percas-europeias vinham noticiando pelos cotovelos que o espetáculo daquela idiossincrática trupe de artistas valia a pena, literalmente. O veado-vermelho-da-sardênia, injustamente acusado de “comunista safado” pelos últimos dos energúmenos, disse aos novos amigos que um papagaio-preto-das-seicheles havia alertado sobre uma recente praga de esquilos-gigantes-do-sri-lanka e de ciguás-porto-riquenhos que vinham proliferando descontroladamente nos últimos tempos em decorrência do desequilíbrio ecológico. Esses doces animais, agora ensandecidos pela fome vital, estavam, de certa forma, complementando o estrago abissal que os seres humanos tinham impingido ao planeta.

Procurando evitar um mal maior, voluntários da fauna e da flora dos países sem fronteiras providenciaram o recrutamento de dragões-de-komodo, de preguiças-de-coleira, de tamanduás-bandeira e de tatus-bolas-da-caatinga para neutralizar os efeitos indesejáveis da praga animal que colocava em risco o equilíbrio ecológico pós-hecatombe. Os peixes, as aves, os anfíbios, os répteis, os mamíferos e o extenso grupo de animais invertebrados tinham desenvolvido uma imunidade à pandemia do vírus do ódio que houvera matado as pessoas pelo coração. Os homens mansos que não tinham matado, nem morrido de ódio, capitularam pelas mandíbulas desarticuladas dos crocodilos-persas e das iguanas-listradas-de-fiji. “Aqui se faz, aqui se paga”, comentou o urso-de-óculos.

O sol estava a pino. Ninguém mais sabia dizer que horas eram. As sombras giravam preguiçosas sobre a terra. Eram condores-dos-andes que sobrevoavam em círculos, contemplando a terra arrasada e a paz reinante. Bisontes-europeus comiam a grama verde e adubavam com estrume quente as mentes férteis das feras que habitavam os vales, as tocas e as planícies. Além do receio de ser devorado, de acordo com a ordem natural da escala animal, não restavam terror e medo.

Da forma mais trágica, a justiça terrena tinha sucedido e o planeta estava, agora, entregue às plantas, às pedras e aos animais, como tinha sucedido nos primórdios da vida. Macacos-de-gibraltar. Leões-marinhos-da-patagônia. Mangustos-da-libéria. Salamandras-dos-alpes. Lulus-da-pomerânia.

Galinhas-da-angola. Órixes-da-arábia. Todos viviam em prol de um mundo liberto da sanha deletéria de homens e de mulheres que se extinguiram à imagem e à semelhança de Deus. Ninguém mais rezava porque, simplesmente, não havia pecado. O mundo era o bicho.