Katie Holmes na Netflix: o filme que vai fazer você acreditar em milagres e viver sem culpa Divulgação / Seacia Pavao

Katie Holmes na Netflix: o filme que vai fazer você acreditar em milagres e viver sem culpa

A vida se apresenta conforme a capacidade de cada um de suportá-la, desfazendo certezas e planos, atropelando o que julgamos valioso, impondo sua natureza implacável. Ela nos confunde, esclarece suas intenções sombrias, e lança-nos em profundos abismos povoados pelos monstros que criamos. Ao viver e ganhar familiaridade com a existência, percebemos que sua maior diversão é nos submeter a seus caprichos, cujas razões ninguém pode verdadeiramente conhecer. A vida segue, e é essa passagem que nos permite algum controle sobre seus ardis imprevisíveis, um pensamento sempre arriscado. Deixa um rastro de destruição, um mar de lágrimas, algumas exageradas, mas a maioria nascida de uma dor que só sentimos, e ao fim, resta juntar os pedaços da dignidade estilhaçada e ter a coragem de recomeçar. De outra forma.

Enfrentamos essa cruel existência de cara limpa ou com métodos menos ortodoxos; estamos todos sós, mas não o tempo todo. Nessas pausas, encontramos provas de que a vida é desprovida de sentido, e quanto mais tentamos entendê-la, mais próximos chegamos da loucura e do absurdo. As personagens centrais de “Tudo o que Tínhamos” constantemente flertam com a insanidade, sem certeza de quão distantes estão da realidade, anestesiadas pelas formas mais vulgares de sofrimento. Katie Holmes divide-se entre dar vida a uma dessas figuras e dirigir o longa, mostrando-se uma realizadora atenta e sensível, empenhada em evitar a mesmice.

Como Rita Carmichael, Holmes explora quase todos os campos da dramaturgia em menos de duas horas. O roteiro de Annie Weatherwax, baseado em seu romance homônimo, com Jill Killington e Josh Boone, é um presente para os atores, apesar de a palavra ter se desgastado pelo uso excessivo. Holmes faz jus às possibilidades que Rita lhe oferece, movendo-se entre drama e comédia, melodrama e tragédia, com uma verossimilhança admirável. A interpretação de Holmes revela a necessidade material de sua personagem sem cair em diálogos vazios, preservando a angústia de Rita. A história dessa mulher, que perdeu tudo e agora só tem a si mesma, mostra sua força vulnerável ao criar a filha, Ruthie, interpretada por Stefania Owen, que se torna mais resistente e sensata que a mãe.

A metamorfose de Ruthie para mulher é evidente em sua afeição por Pam, a garçonete transexual vivida por Eve Lindley. Enquanto Rita faz comentários jocosos e grosseiros sobre Pam, Ruthie a acolhe e é acolhida por ela. Lamentavelmente, a amizade das duas se perde em meio às várias subtramas, como os romances de Rita com homens de origens opostas, sem muita função na história.

“Tudo o que Tínhamos” é a história despretensiosa de uma mãe e filha lutando pela felicidade — e, antes disso, pela sobrevivência juntas —, uma compilação de situações dramáticas resolvidas com a objetividade e a poesia possível por Katie Holmes, que demonstra gosto pela direção. Que ela continue exatamente assim.


Filme: Tudo o que Tínhamos
Direção: Katie Holmes
Ano: 2016
Gêneros: Drama
Nota: 8/10