O primeiro filme a ser produzido completamente com pinturas na história do cinema está no Prime Video Divulgação / A2 Filmes

O primeiro filme a ser produzido completamente com pinturas na história do cinema está no Prime Video

A vida de Vincent van Gogh (1853-1890) foi uma madrugada fria, brumosa, escura, de onde conseguiu tirar a luz, a cor, o brilho que marcou uma vasta produção de mais de oitocentos quadros — dos quais conseguiu vender apenas um. Quase todo mundo conhece “Noite Estrelada” (1889), a bela alegoria sobre a loucura que aprisionava um homem de raro gênio num hospício de Saint-Rémy-de-Provence, um artista desesperado pela aurora que enxergava a beleza das trevas como poucos, mas Van Gogh é também Campo de Trigo com Corvos (1890), “Terraço do Café na Praça do Fórum” (1888), “Os Comedores de Batata” (1885) e “Amendoeira em Flor” (1890), este um lampejo fugaz de romantismo e fé na vida, meses antes que o esplim e a tristeza conduzissem-no ao desatino irremediável e uma sequência de eventos misteriosos culminassem em seu passamento, em 29 de junho daquele ano, em Auvers-sur-Oise, a pouco mais de 33 quilômetros ao norte de Paris, dois dias após a malfadada tentativa de um suicídio ainda hoje obscuro. 

“Com Amor, Van Gogh” é o bravo esforço da polonesa Dorota Kobiela e do americano Hugh Welchman para refazer as últimas impressões do pai da arte moderna acerca de um mundo quiçá tacanho demais para entendê-lo, ainda que ele pareça nunca ter feito muita questão do beneplácito de ninguém. Esse é um ponto-chave para que o roteiro do casal e de Jacek Dehnel comece a traçar suas elucubrações um tanto idiossincrásicas, porém sempre racionais, acerca do fim macabro do “ruivo louco”, valendo-se da carta que escrevera para Theo (1857-1891), o irmão mais novo, que também padecia de uma doença até então incurável que o viria a matar. E da colaboração de uma equipe inspirada.

Ao longo de uma década inteira, 125 artistas plásticos coloriram um a um os 65.000 quadros em que Kobiela e Welchman voltam a 1891, ano seguinte ao da morte de seu biografado, a partir de Arles, onde Van Gogh também morou — foi nessa cidade do sudeste da França, aliás, que o holandês inaugurou a Casa Amarela, uma pequena academia para pintores em início de carreira, sobre a qual o documentário não se estende com a devida atenção. Douglas Booth surge perfeitamente reconhecível na pele de Armand Roulin, filho do carteiro Joseph Roulin (1841–1903) , de Chris O’Dowd, um dos poucos e grandes amigos de Van Gogh na França ou qualquer outra parte. Os Roulin serviram-lhe de modelo para a famosa série de retratos que lhe davam muito prestígio, mas nenhum dinheiro. 

Armand volta a Arles a mando do pai a fim de entregar o que pode ser a última carta do Van Gogh mais velho para o marchant Theo, a que Cezary Lukaszewicz dá a justa medida de uma frieza involuntária conhecida apenas por quem privou da intimidade dos irmãos e pelos estudiosos, que ainda não chegaram a qualquer palavra categórica quanto ao ocaso de Vincent na França. Robert Gulaczyk, por seu turno, é a própria encarnação de Van Gogh, e ainda que não apareça de corpo presente, tem o condão de usar os flashbacks fotográficos em preto e branco para modular a voz de forma a transmitir a inconstância fundamental de seu personagem, demonizado por Louise Chevalier, a governanta fanática de Paul Gachet, de Jerome Flynn, o médico que cuidava dele, e amado por Marguerite, sua filha, com quem pode ter vivido seu único amor. Por espantoso que soe, tanto pior para um misantropo declarado, as mulheres tiveram seu destaque na breve jornada do impressionista, e Helen McCrory e Saoirse Ronan, em campos opostos, explicitam-no a contento.

A hipótese defendida por Kobiela e Welchman para o malogro de Armand, estritamente ligada ao próprio Theo, carece ainda hoje de comprovação histórica, mas a sublime trilha sonora de Clint Mansell, pródiga em cordas e piano, ameniza as diversas e abissais lacunas da existência e da finitude de um dos artistas mais talentosos e destemidos da História. Vincent van Gogh, esse rebelde das causas perdidas, não tinha medo de nada, nem de si mesmo. Van Gogh era um sol de outono, laranja, num céu de muitas nuvens.


Filme: Com Amor, Van Gogh
Direção: Dorota Kobiela e Hugh Welchman
Ano: 2017
Gêneros: Documentário/Drama/Biografia/Animação 
Nota: 9/10