Aclamado no Festival de Toronto e indicado a 25 prêmios, filme com Rachel Weisz na Netflix é uma obra-prima Divulgação / Sony Pictures

Aclamado no Festival de Toronto e indicado a 25 prêmios, filme com Rachel Weisz na Netflix é uma obra-prima

Nos últimos dez anos, Sebastián Lelio, um cineasta chileno, tem ganhado notoriedade por suas representações de personagens femininas complexas que desafiam normas estabelecidas. Seus filmes se destacam por abordar a constante exclusão das mulheres, apresentando protagonistas que lutam contra as normas sociais e buscam afirmar suas identidades. “Desobediência”, um melodrama de Lelio que explora o poder da escolha, se passa no contexto do judaísmo ortodoxo, mas poderia ser ambientado em qualquer lugar do mundo onde doutrinas religiosas ditam o destino das pessoas sem possibilidade de mudança.

Em “Gloria” (2013), Lelio se concentra na vida relativamente estável, mas tediosa, de uma mulher divorciada que, sem perceber, se apega à rotina de um passado morto até que começa um relacionamento que a traz de volta à vida, embora com grandes e perigosas revelações. Em “Uma Mulher Fantástica” (2017), o diretor explora o drama de uma mulher transgênero que perde seu namorado idoso, mostrando as múltiplas facetas da tragédia. Cinco anos depois, Lelio demonstrou mais uma vez seu talento com “O Milagre”, uma história convincente sobre uma farsa.

Baseado no romance homônimo de Emma Donoghue, publicado em 2016, o filme de 2022 compartilha muitos pontos com “Desobediência”, explorando os limites impostos pela fé à felicidade e ao livre arbítrio. O filme aborda essa ideia ao longo de seus 114 minutos. Ronit Krushka, a personagem central, pode ser vista como a Lib Wright do século 21. Em 1862, a enfermeira inglesa criada por Donoghue viaja à Irlanda para investigar o mistério de Anna O’Donnell, uma jovem que jejuou rigorosamente por quatro meses sem sofrer danos à saúde. Essa narrativa é semelhante à de Ronit, que retorna à casa do pai para reviver um passado morto. Ambas as histórias estão ligadas por escândalos causados pelo uso distorcido da religião e da fé.

No início, Hashem criou três classes de seres: anjos, feras e humanos. Apenas os humanos desafiam Deus, possuindo o poder de escolha e sendo evoluídos e corruptos o suficiente para desobedecê-Lo. Anjos não podem fazer o mal porque não o conhecem; feras agem por instinto, um presente da natureza; e os humanos seguem seus desejos, ignorando deliberadamente o bem e o mal e, pior, transformando o bem em mal. O rabino Rav Krushka, interpretado por Anton Lesser, prega isso durante um culto na sinagoga e cai morto de um ataque cardíaco.

A partir daí, a adaptação de Lelio e Rebecca Lenkiewicz do romance homônimo de Naomi Alderman aprofunda-se na vida de Ronit, a filha de Rav, com quem ele não tinha contato há décadas. Ronit tornou-se uma fotógrafa renomada, conhecida por registrar a vida underground de Nova York, mas interrompe seus compromissos para viajar a Londres e participar do funeral do pai. Ao chegar, apesar da estranheza que provoca na comunidade devido ao seu estilo independente, ela percebe que pouco mudou, inclusive dentro de si.

A jornada de Ronit marca um ponto de virada em “Desobediência”. Rachel Weisz começa a revelar o propósito de sua personagem, e Lelio usa a expressão indiferente da atriz para transmitir sutilmente a profundidade da ruptura entre pai e filha, tão severa que Rav declarou a todos que nunca teve filhos. Curiosamente, a mãe de Ronit nunca é mencionada, um deslize notável na narrativa.

A homossexualidade de Ronit vem à tona quando ela descobre que Dovid Kuperman, filho adotivo de Rav, casou-se com Esti, e não com Hinda. O rosto apagado de Esti se ilumina com uma paixão reprimida, mas ainda presente. Weisz, Rachel McAdams e Alessandro Nivola dominam as cenas a partir desse ponto, mantendo o interesse do público. Lelio ajusta os elementos narrativos para explicar o relacionamento entre Ronit e Esti, deixando a audiência a questionar se Dovid não as afastou a mando do rabino para ser reconhecido como seu sucessor.

A manipulação intricada do filme se desenrola até a cena final, com Weisz, McAdams e Nivola revezando-se no papel de antagonista. Ronit é criticada por voltar e desestabilizar a vida do casal, especialmente agora que Esti está grávida após anos de tentativas. Esti é vista como moralmente fraca por não decidir se vai ou não para Nova York com Ronit, com quem retoma um caso. Dovid, apesar de sua sensatez, enfrenta a rejeição do público por sua falta de assertividade ou por permitir que os acontecimentos se desenrolem sem controle, sendo um obstáculo na vida de Ronit e Esti.

Assim como em “O Milagre”, “Desobediência” não oferece soluções fáceis e termina com um último ato farsesco que, isoladamente, não se alinha com a progressão orgânica da narrativa. Ainda assim, este é indiscutivelmente um dos melhores filmes de Lelio, graças à sua habilidade de explorar feridas até que sangrem novamente.


Filme: Desobediência 
Direção: Sebastián Lelio 
Ano: 2017 
Gêneros: Romance/Thriller 
Nota: 9/10