Ninguém está a salvo de tornar-se um servo das próprios apetites, principalmente nos momentos em que tudo quanto resta é só a felicidade que já não existe mais. Ao longo de toda a vida, cerca-nos o perigo de que passemos ao melancólico estado de arqueólogos de nossa própria história, cascavilhando nossas miudezas em busca de qualquer coisa que nos faça supor que uma época boa, mas já sepulta há muito, pode reviver por si só ou, contrariando ainda mais a razão, ter uma certeza tão renitente quanto detestável de que seremos nós que vamos tomar um trem mágico para todas as gares das recordações e lá permaneceremos o quanto desejarmos, voltando depois como se nada tivesse havido.
Os moscovitas Angela Nikolau e Ivan Beerkus, o Vanya, aparecem como os heróis-bandidos de “Skywalkers: A Love Story”, equilibrando-se entre a vaidade, o desejo de fazer algo grandioso; o medo, esse carrasco da alma humana, sempre a nos dar os conselhos mais úteis e menos românticos; o amor, o propósito de quem vive; e estruturas de aço de dezenas de toneladas e instáveis como uma pluma ao vento. O documentário de Jeff Zimbalist e Maria Bukhonina, pleno de passagens descaradamente laudatórias às tolas façanhas de Nikolau e Beerkus, perigosas também para quem está no solo, alheio ao que se passa nas alturas a que os dois chegam sem nada mais que um par de tênis e, claro, celulares, sofisticadas câmeras digitais e drones, é um prato cheio para aventureiros de fim de semana e um tédio para aqueles que não se impressionam com as demonstrações de autossuficiência de um insólito casal jovem e algo perdido, a melhor parte desse enredo repetitivo e meio artificioso.
Depender da bondade de estranhos nunca é o melhor dos mundos. Quando essa é a única saída, entretanto, todo cuidado é pouco no que se refira a manter-se a salvo de inimigos cuja verdadeira essência fica cada vez mais obscura, como se as luzes faltassem, o ar se tornasse rarefeito de súbito e se entrasse num dédalo cujo chão se abrisse à medida que sentisse a força dos passos do infeliz ali encarcerado. Ainda que no encerramento o roteiro de Zimbalist volte ao turbilhão emocional que fora a vida de Nikolau, sente-se a falta de um pouco mais dos causos saborosos da família, vitaminados pela avó da moça, idosa e meio surda, o único vínculo com o passado que ainda lhe resta.
Ela conta que os pais eram artistas circenses, e aí pode ter nascido sua urgência em também viver perigosamente, e aproveita para emendar com uma desconcertante sabedoria precoce que são raras as mulheres a compreenderem que nunca serão fortes como os homens, e que aí está sua verdadeira força. Nesse embalo, Beerkus entra na vida dela, e com alguma hesitação de parte a parte, os dois acabam por resolver que devem seguir juntos — leia-se escalar juntos arranha-céus que mais parecem montanhas na selva de pedra das megalópoles de todo o planeta.
O Merdeka 118 entra na vida dos dois como o novo desafio e a nova obsessão que precisam vencer. Zimbalist e Bukhonina abusam dos belos registros de Nikolau e Beerkus agora trabalhando em sintonia nos números artísticos dela; as imagens no edifício de 678,9 metros de altura e 118 andares em Kuala Lumpur, na Malásia, o segundo maior do mundo, atrás do Burj Khalifa, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, fascinam decerto. Mas quando decidem se aposentar, a maior parte da audiência encontra a maior graça que poderia.
Filme: Skywalkers: A Love Story
Direção: Jeff Zimbalist e Maria Bukhonina
Ano: 2024
Gênero: Documentário
Nota: 7/10