Asas do Desejo, de Wim Wenders, busca a ‘épica da paz’ para os tempos modernos Divulgação / Argos Films

Asas do Desejo, de Wim Wenders, busca a ‘épica da paz’ para os tempos modernos

Nenhum outro filme marcou tanto os anos 1980 como “Asas do Desejo”, do alemão Wim Wenders. Foi uma síntese de uma época a história da dupla de anjos vagando pela cidade de Berlim, ainda dividida pelo muro. Esteticamente, o diretor montou um enredo básico cercado de fragmentos estilizados, bem no espírito daqueles anos. Ao mesmo tempo, deve ter sido o último registro do muro e seus simbolismos, como monumento à barbárie do século 20, mas um filme que sugere a utopia da paz futura.

Como toda grande narrativa, “Asas do Desejo” tem um enredo possível de ser resumido em poucas linhas. O anjo Damiel (interpretado por Bruno Ganz) se cansa da vida eterna e decide abandonar seu companheiro de jornada, Cassiel (Otto Sander), depois de assistir à apresentação da trapezista de circo Marion (Solveig Dommartin). Ser um humano seria para Damiel a descoberta do amor, do corpo e de coisas prosaicas como beber café e sujar as pontas dos dedos com a tinta do jornal em papel.

A estrutura narrativa de Wim Wenders tem um fio nítido, quase um roteiro de filme de Hollywood (uma das obsessões do diretor e que explicam o momento em que ele voltou os olhos para Berlim). É impossível não se lembrar do clássico “A Felicidade não se Compra” (1946), de Frank Capra, até hoje um filme que estimula a compaixão em tempos sombrios. Também o diretor alemão mantém, em primeiro plano, a clareza e a simplicidade de sua obra anterior, “Paris, Texas” (1984).

Para quem vê os filmes de Wenders, o convite é sempre o de entrar em outras camadas das histórias contadas e que parecem bem simples. Pode-se falar até em camadas mais profundas, para desvendar pontos escondidos, citações múltiplas e detalhes — tenho minhas desconfianças com a tal profundidade, mas isso pouco importa aqui. “Asas do Desejo” é um universo de pequenas coisas, por ser todo construído em fragmentos, uma multidão de pessoas, mesmo que tenha tão somente cinco personagens.

Céu de Berlim

As primeiras cenas trazem os anjos Cassiel e Damiel flanando pelas ruas da então Berlim ocidental. O filme foi lançado em maio de 1987, no Festival de Cannes. A dupla anda sem destino pelas ruas da cidade, vendo tudo e todos por cima. O título original para o público alemão é justamente “O Céu Sobre Berlim”, transformado para as famosas “Asas do Desejo” no mercado internacional. As imagens de abertura são em preto e branco para mostrar a visão incompleta dos anjos. Eles escutam os pensamentos das pessoas.

Os únicos que veem os anjos são as crianças. Esse é o ponto relevante: a infância como o momento de conhecer o mundo, de ver o que adultos não enxergam. Nessa questão, entra em cena o poema do escritor e co-roteirista do filme Peter Handke. Trata-se de um dos mais elementos constitutivos de “Asas do Desejo”. De tão impressionante, os versos ganharam vida própria e viraram até canção do músico irlandês Van Morrison — o rock moderno é uma das fixações tanto de Wenders, como de Handke.

Há traduções boas do poema para o português na internet, com a de Júlio Sato, que analisou o poema de Handke: 

Quando a criança era criança,
era o tempo das seguintes perguntas:
Por que eu sou eu e por que não você?
Por que eu estou aqui e por que não aí?
Quando iniciou o tempo e onde termina o espaço?
Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho?
O que eu vejo e ouço e cheiro não é apenas
a aparência de um mundo diante do mundo?
Existe de fato o Mal
e as pessoas que realmente são as más?
Como pode ser que eu, que sou eu,
antes de ser eu mesmo, não era eu,
e que, em algum momento, eu que sou eu,
não mais serei este eu que eu sou?

Damiel e Cassiel anotam os fluxos de consciência e inconsciência de Berlim. Em seus voos pelo céu de cidade, os anjos são os únicos que podem passar de um lado para outro do muro famoso e entrar nas casas e nos apartamentos. O avô que fica indignado com o menino que só vê televisão, a mulher que tem de cuidar da arrumação doméstica, o suicida em cima de um prédio. Há uma vida ordinária dos humanos. Ao mesmo tempo, a política criou a fratura da cidade e do mundo: o muro como símbolo da Guerra Fria.

No livro “Wings of Desire” (2019), Christian Rogowski mergulhou nos vários fragmentos que preenchem a história do anjo que decidiu virar um ser humano. Segundo ele, uma das referências claras do filme é o romance “O Céu Dividido” (1963), de Christa Wolf, que narra o impacto da criação do muro pelo ponto de vista de um casal. Neste livro, o personagem Manfred diz: “O céu, pelo menos, eles não podem dividir”. A personagem Rita responde: “Não, é o céu que se divide primeiro”.

A gênese do filme

Rogowski analisa longamente a questão do céu berlinense de Wenders. Ele é o espaço comum possível para a cidade/mundo dividida. Assim o diretor desenha a sua utopia de uma “épica da paz”. Não apenas histórias de guerra devem capturar a condição humana e mais especificamente a do povo alemão. Antes de tudo, “Asas do Desejo” é um acerto de contas do diretor com seu país e sua cultura. E, a todo momento, invadem a tela as imagens de arquivo da Segunda Guerra Mundial, o museu de atrocidades. 

Outra fonte para entender a gênese do filme é o texto “Primeira descrição de um filme verdadeiramente indescritível” (1986), publicado na coletânea de Wim Wenders, “A Lógica das Imagens”. Poucas vezes se teve acesso aos motivos de um artista para criar uma obra. Vale a pena acompanhar a escrita do diretor, num momento de abertura para o que ele pretende fazer, mas ainda em construção. Algo semelhante ao que Thomas Mann escreveu em seu diário de elaboração do romance “Doutor Fausto”.

“Eu desejei e vi brilhar um filme em e, por isso, sobre Berlim. Um filme em que pudesse estar contida uma noção de história dessa cidade desde o fim da guerra [a de 1939 a 1945]. Um filme em que pudesse surgir e manifestar-se aquilo de que sinto a falta em tantos filmes que aqui se desenrolam e que, contudo, parece estar tão palpável diante dos olhos, quando chegamos a esta cidade: uma sensação, sim, mas também alguma coisa no ar, e sob os pés, e nas caras”, escreve Wim Wenders.

Uma ligação explícita com o trauma da guerra, segundo Rogowski, aparecia na primeira versão do roteiro do filme. Wenders e Handke imaginaram um grupo de nazistas que viravam lobisomens e passavam 40 anos escondidos no subterrâneo do Berlim. Um dia, eles despertariam, nos anos 1980, e atormentariam a vida de Damiel e Cassiel. Seria um enredo mais político, porém beirando ainda mais a fantasia e a distopia. Prevaleceu ao fim de tudo a ideia da narrativa em torno dos anjos.

O personagem que carrega o peso da História é Homer (interpretado pelo ator veterano Curt Bois). Um senhor muito idoso que sempre está grande biblioteca de Berlim. Esse local é o preferido por todos os anjos que flanam pela cidade, sendo a casa deles. Homer é uma referência ao autor da “Odisseia” e da “Ilíada” (épicas da guerra), mas Handke fez questão de colocar em seus pensamentos a ideia de uma “épica da paz”. Como narrar histórias que não sejam escombros, traumas e violências? Wenders busca respostas.  

Pós-História

Os monólogos/pensamentos de Homer são a chave para entrar em outra dimensão de “Asas do Desejo”. O que se antecipa nesses trechos é a virada de página após 1989, quando cai o muro de Berlim e começa um tempo novo. Homer é um anjo da História, inspirado em Walter Benjamin. Um período novo em que a Europa, e Berlim, deveriam buscar enfim a utopia de liberdade e igualdade, mas o fantasma do nazismo reaparece como lobisomens imaginados na primeira versão de “Asas do Desejo”.

Diz Wenders que ele chegou a pensar no ex-primeiro-ministro alemão Willy Brandt no papel de um dos anjos do filme. A ideia não prosperou. Ao final, optou-se por uma solução estética pop. Famoso pela série de televisão “Columbo”, o ator Peter Falk fez o papel de si mesmo na filmagem de uma história ambientada na Segunda Guerra. Um filme dentro de um filme. Falk é também um anjo que decidiu virar humano e conversa com Damiel, num trecho que transborda a visão cristã de humanidade e futuro.

A “épica da paz” de Wenders vai dar as caras em dois trabalhos dois trabalhos recentes do diretor. O primeiro é o documentário sobre o Papa Francisco, feito a convite do próprio Vaticano. Um novo tempo da Igreja Católica, representada por um cardeal argentino, o homem ou anjo que vem de um lugar distante do planeta. O segundo filme é “Dias Perfeitos”, sobre o dia a dia do limpador de banheiros públicos em Tóquio. Há dignidade até na limpeza de um vaso sanitário, por uma espécie de anjo japonês.

A Pós-História pensada por Wim Wenders não é o apocalipse de um país (os Estados Unidos) impondo livre-mercado financeiro e democracia torta pelo mundo afora. Essa foi a utopia (furada) de Francis Fukuyama. Para o diretor, o futuro está na busca de uma vida humana: um limpador de banheiros, o grupo de cubanos do Buena Vista Social Club, os anjos que deixam a eternidade e a genialidade do rock de Nick Cave, Patti Smith, Ry Cooder e Lou Reed, que fazem as trilhas sonoras de Wenders.