A cultura pop nunca mais foi a mesma depois de Lassie. A rough collie, protagonista de “A Força do Coração” (1940), romance do britânico Eric Knight (1897-1943) nascido do conto homônimo publicado no “Saturday Evening Post” em 1938, marcou gerações, a ponto de, metonimicamente, designar todos os cachorros daquela raça — e até os vagamente parecidos. Por óbvio, Hollywood não deixaria a oportunidade passar e, Pal, um macho, deu vida à adorável cadelinha em “Lassie, a Força do Coração” (1943), de Fred McLeod Wilcox (1907-1964), um dos primeiros trabalhos de ninguém menos que Elizabeth Taylor (1932-2011), contando então onze anos.
“Juntos para Sempre” é um dos tantos filmes a desvendar a relação entre canídeos e homo sapiens sapiens, chegando a uma conclusão talvez exagerada em seu lirismo, mas por isso mesmo arrebatadora: os cerca de vinte mil anos de amizade entre nós e os cães vêm de outras vidas. Os roteiristas W. Bruce Cameron, Maya Forbes, Cathryn Michon e Wallace Wolodarsky adaptam “A Dog’s Journey” (“jornada de um cão”, em tradução literal), o livro de Cameron publicado em 2012, de modo a insistir na atávica lealdade de um mascote especial, e a diretora Gail Mancuso, muito conhecida de trabalhos na televisão americana, elabora alegorias de forte carga poética, nas quais um filhote não se dá por vencido enquanto não cumpre uma tarefa maior que a vida.
Filmes com animais sempre hão de receber do público a imediata atenção que histórias sobre homens comuns e mulheres corajosas levam bons minutos para conquistar — exceção reservada às tramas sobre crianças-prodígio ou as que enfrentam doenças inexplicáveis, de que muitas vezes acabam não escapando. Nas raras vezes em que conseguimos esquecer, pelo espaço de um instante que seja, as muitas comodidades da vida pós-moderna e nos voltamos para o que pode haver de mais trivial na essência de cada um, encontramos no mais fundo de nosso espírito algumas das respostas pelas quais procurávamos há muito tempo, quiçá desde que abrimos os olhos para a luz do mundo. Essa busca, ora insana, ora de uma racionalidade assombrosa, até parece a caminhada errante do último poeta, perdido em suas vãs quimeras, saboreando o gosto do beijo de um anjo enquanto atravessa o arco-íris, sequioso de seu quinhão de ouro.
Bailey começa a história no corpo de um imenso híbrido de são-bernardo com pastor australiano, e ao longo da história, Mancuso explica da forma mais crível que consegue como ele chega a um yorkshire marrento, depois de diferentes nomes e uma passagem pelo sexo oposto, quando atende por Molly. Em seu entorno, está sempre Clarity June Mitchell, a CJ, a garota doce, mas envolta num turbilhão de questões nada amenas que Kathryn Prescott dá uma aura de autêntica heroína, sobrevivendo com seu cãozinho a Gloria, a mãe negligente e alcoólatra vivida por Betty Gilpin, até alcançar uma poderosa autorrevelação. Ainda que no enredo caibam muitos outros personagens, o desfecho, com Bailey livre para correr nos campos de centeio de uma outra dimensão, é o melhor de uma narrativa quase rocambolesca, mas de que não se pode tirar os olhos, mais que apenas a sequência de “Quatro Vidas de um Cachorro” (2017), de Lasse Hallström.
Filme: Juntos para Sempre
Direção: Gail Mancuso
Ano: 2019
Gêneros: Aventura/Comédia/Drama
Nota: 8/10