Um livro de memórias que se foca no cotidiano de uma família ao longo de 14 anos dificilmente será linear. Ele abrange conquistas, fracassos, risos, choros, prazeres e dores — todos os elementos que os moldaram. As lembranças mais significativas, aquelas que persistem através dos anos e resistem ao esquecimento, permanecem para sempre, mesmo que machuquem. Eventualmente, é necessário revisitar essas memórias e desenterrar lembranças que, muitas vezes, surpreendem pela intensidade que ainda carregam. O tempo faz com que aquilo que vivemos há décadas continue a causar dor, pois nos lembramos de que não há mais nada a ser feito além de rir ou chorar.
“Era uma Vez um Sonho” se desenrola entre 1997 e 2011, sem se prender a uma ordem cronológica rígida, mantendo precisão enquanto evita exageros e caricaturas. O drama permanece genuíno e não se transforma em melodrama, graças à habilidade de Ron Howard em equilibrar esses elementos. A história gira em torno de alguém deslocado em seu próprio ambiente, um indivíduo que ama sua família, mas se vê incapaz de entendê-los ou de apoiar suas atitudes. O protagonista deseja uma vida melhor, mas constantemente se vê preso em situações fora de seu controle, ligadas a laços familiares muito estreitos.
J.D. Vance, interpretado por Owen Asztalos em sua juventude, é um garoto gentil e corajoso, com um senso de justiça e honra que desenvolveu apesar do ambiente difícil em que cresceu. Mais tarde, J.D. é um estudante de direito em Yale, uma das universidades mais renomadas dos EUA. Gabriel Basso, que assume o papel nesta fase, mantém a simpatia do público pela personagem, destacando sua natureza trabalhadora e seus valores. Usha, colega hindu-americana e namorada de J.D., interpretada por Freida Pinto, é menos brilhante, mas ainda assim cativante.
J.D., esforçado mas não especialmente talentoso, enfrenta diversos desafios, sentindo que poderia alcançar mais, apesar das lacunas em sua educação e formação cultural limitada. Sua origem humilde nunca o permitiu dominar detalhes aparentemente triviais, mas importantes, como a ordem dos talheres à mesa ou a escolha do vinho adequado para harmonizar com um prato. Mesmo com essas desvantagens, ele ainda tinha alguma chance de sucesso, mas a balança se desequilibra devido à sua mãe, uma ex-enfermeira viciada em heroína.
Amy Adams divide o protagonismo com Basso, interpretando Beverly, cuja dependência química causa altos e baixos intoleráveis para os que a cercam. Ela sabe que é um fardo para a família, especialmente para J.D., mas está tão debilitada que não consegue levar a sério um tratamento, buscando uma solução definitiva, por mais trágica que seja. Recentemente, Beverly sobreviveu a uma overdose, e embora pense que sua vida não importa a ninguém, seus familiares fazem de sua recuperação o grande propósito de suas vidas. Esses parentes rudes de uma cidadezinha montanhosa ao norte do Kentucky também são capazes de amar.
Howard baseia-se na ideia simplista de que somos condenados a repetir os comportamentos observados na infância, uma teoria com algum respaldo na psicanálise freudiana. Contudo, ele também mostra que é possível romper com esses padrões através de autossacrifício, como exemplificado por Mamaw, a avó de J.D., interpretada por Glenn Close. A atriz, quase irreconhecível, entrega uma performance impressionante como Mamaw, uma sobrevivente. Em um flashback, emergem abusos do passado que contribuíram para o infortúnio de Beverly. Cada família infeliz é infeliz à sua maneira.
Uma reviravolta no meio do filme revela a turbulência das relações entre os personagens, tornando difícil acreditar que algo bom possa surgir dali. Apesar do ressentimento e do ódio que fervilha, Howard e seu elenco conseguem retratar essa família disfuncional de uma forma que ressoa com o público. A direção sensata e quase cartesiana resulta em atuações excepcionais. Embora cada membro da família Vance tenha a liberdade de seguir seu próprio caminho, eles permanecem juntos, muitas vezes rimando sina e ruína, como nos filmes de Fellini. Momentos cruciais de “Era uma Vez um Sonho”, na Netflix, demonstram que, apesar de todas as adversidades, essa família tem uns aos outros, e isso faz toda a diferença em muitos momentos da vida.
Filme: Era uma Vez um Sonho
Direção: Ron Howard
Ano: 2020
Gênero: Drama
Nota: 10