Riobaldo nas quebradas

Riobaldo nas quebradas

O romance “Grande Sertão: Veredas” (1956), de Guimarães Rosa, é uma obra intraduzível no sentido amplo da palavra. Não há outras palavras para dar conta dessa história — só as do autor. As tentativas de transpor a escrita rosiana para outros meios falharam ao longo dos tempos. Foi o caso da primeira versão para o cinema em 1965. Vinte anos depois, veio uma série de televisão com atores e atrizes famosos da TV Globo — hoje o resultado não parece de todo ruim, mas isso pouco importa.

Agora chegou a vez de Guel Arraes (direção) e Jorge Furtado (roteiro) em “Grande Sertão” (2023), atualmente em exibição nos cinemas. Também está pronto “O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho” (2023), de Bia Lessa. As duas adaptações partem de uma solução interessantíssima: o deslocamento da história para fora do sertão mineiro. A trama se passa numa favela distópica, nas mãos de Arraes, e num ambiente futurista com Lessa. O sertão é tudo, está em toda parte e é o Brasil que perdeu sua forma.

O achado do filme de Arraes e Furtado foi a utilização dos mesmos atores que fizeram a versão teatral de Bia Lessa para “Grande Sertão: Veredas” no teatro, em 2019. O texto, a fala, estão na ponta da língua de Caio Blat e Luísa Arraes, que já incorporaram a escrita de Rosa às suas expressões. A interpretação está afiadíssima, restando aos diretores a ousadia de descolar a história do campo árido para a cidade em ruínas Se o romance era uma “proto-História” da nação, o filme atual é a “pós-História”, o depois do fim.

O filme “Grande Sertão” traz Caio Blat na figura de Riobaldo velho, o narrador da história. É possível fechar os olhos e ouvir uma voz como se estivesse lendo o romance de Guimarães Rosa. Mas, de olhos abertos, o espectador é levado para uma “quebrada” brasileira. Um conjunto de casas mal construídas, ruas enviesadas, vielas, uma cidade cercada de muro, o céu cinzento. Poderia ser o cenário dos filmes de Adirley Queirós, que filma na Ceilândia, no Sol Nascente, do Distrito Federal.

O mundo sem forma do sertão, antes de modernidade, virou a favela pós-moderna. É fácil e imediato comparar o “Grande Sertão” de Arraes e Furtado à franquia Mad Max. Porém é uma trama brasileira. Foram o cronista Antônio Prata e o sociólogo Gabriel Feltrán que interpretaram o Brasil pós-2018 como um “sistema jagunço”. Nada mais parecido com os milicianos das quebradas da metrópole do que os jagunços do sertão rosiano. São os seres do “mundo à revelia”, como diz o personagem Zé Bebelo.

Bala que fala

A ousadia do filme é a demolição do espaço do sertão. Aqueles personagens de Rosa se deslocam para um ambiente pós-moderno que, em outros tempos pré-modernos, foi caracterizado pelo conceito de “anomia”. Um estado em que as pessoas não sabem por que fazem determinada coisa, não compreendem a situação ao seu redor, desconhecem normas e valores da sociedade. Nesse estado, uma pessoa passa da tranquilidade para a fúria, capaz de matar, linchar e picotar o corpo de outra pessoa.

“O senhor: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal…”, diz Riobaldo. O filme de Arraes e Furtado bem poderia se chamar “Riobaldo nas quebradas”. Na “neo-favela”, conforme a observação de Paulo Lins, autor do clássico “Cidade de Deus” (1997), a bala é mais do que um simples pedacinho de metal. Ela fala e narra a vida nesses espaços. Os jagunços do passado são os bichos soltos de hoje.

O ponto alto do filme é o julgamento de Zé Bebelo – agora um miliciano pós-moderno, o sujeito que era da polícia, sonhou em modernizar o país, mas se rende à luta sem fim e sem objetivo dos jagunços/bichos soltos. Trata-se do ponto de inflexão na trama original. É quando Riobaldo se revela perante os chefes dos bandos e cria uma Justiça não-punitiva. Mas também é o momento que a história vira do avesso. A luz dá lugar às trevas no “Grande Sertão”, que assume ares de ópera trágica. 

Os personagens do filme carregam a fala-bala da prosa de Guimarães Rosa. A cada palavra e frase, os sons ganham ritmo. Como a história se passa na favela apocalíptica, o julgamento de Bebelo só poderia ter uma festa funk na sequência. De novo: o filme é demolição e reconstrução de formas. É nesse ponto que surge na tela a ópera-funk. Caminha-se para o transe que vai dar no pacto de Riobaldo com o diabo. E por sua vez, o pacto leva à perda da única coisa que importa ao narrador: Diadorim.

A Diadorim de Luísa Arraes não é só o mito da donzela guerreira. Sua figura andrógina sugere uma pessoa trans. Ela “é” e “não é” em diversos sentidos. Homem dentro de um corpo de mulher. Mulher que assume as formas corporais de um homem. Existe um amor escondido na quebrada do “Grande Sertão”, mais um que não pode aparecer para todos e todas. Outra ousadia do filme: a relação de Diadorim com a personagem Nhorinhá — ela que representa o acolhimento e o carinho no meio do redemoinho violento.

Quanto mais o filme avança em direção à ópera trágica, os personagens criam uma coreografia própria. O transe, os corpos em movimento, os delírios verbais, invadem a tela. E cresce o desespero na voz de Riobaldo/Caio Blat. O confronto de Diadorim com Hermógenes representa o fracasso do pacto com o demônio. O pactário do romance é um fazendeiro idoso, enlutado no final da vida. Já a figura do filme é um sujeito maltrapilho, arruinado e dilacerado pela perda da única pessoa que importava no mundo.