Bronca, cara brava, sermão, castigo. Vez ou outra uns tapas daqueles que mais estalam que machucam, mas que cumpriam a função de desencorajar travessuras nos tempos em que palmada fazia parte do script até de famílias politicamente corretas. O rosto de minha mãe nunca escondeu a rigidez com que ela regia a casa. Jamais houve dúvidas sobre quem ditava as regras e, durante anos de imaturidade e percepção distorcida sobre as relações, eu via a autoridade dela como afronta à minha individualidade. Até que a gente cresce, ajusta o olhar e reconhece a imensidão de amor que transborda em cada gesto incompreendido.
Foi natural. Nas longas conversas após términos de namoro, no abraço que amortecia frustrações, no cuidado impecável e nas palavras de incentivo às minhas ambições eu descobri que tinha uma amiga. Em determinado momento passei a ver minha mãe como alguém que não estava acima de mim, e sim ao meu lado. Não por desconsiderar a hierarquia ou desqualificar seu papel de matriarca, mas por finalmente entender que, entre tropeços e acertos, havíamos construído uma bonita parceria.
Ironicamente, isso só foi possível graças à dose de altruísmo com a qual minha mãe permite que eu seja inteira e dona dos meus passos sem deixar de ter refúgio e amparo em seus braços. Ela, que sempre segurou as rédeas e conduziu os rumos, tem sido a mola que me lança ao mundo e motiva meus voos. E como é mais fácil voar quando se tem a garantia de chão seguro caso precise aterrissar. Como é mais fácil enfrentar a vida quando a cada desgaste, insegurança e imprevisto há um quarto limpo com lençol macio esperando por você. Quando a cada derrapada, medo e vazio há um telefonema que apazigua o coração. É o mertiolate da vida adulta. É o privilégio de ter proteção e amizade num combo que só mãe e filha entendem.
Toda menina, em algum momento, desejou crescer rápido para usar os vestidos coloridos e os sapatos da mãe. Toda menina construiu castelos de areia, passou batom vermelho escondida, olhou para os adesivos de estrelas colados no teto e viajou por um universo imaginário sonhando ser grande. Naquela época não havia muita coisa que pudesse nos amedrontar. Alternávamos alegrias ingênuas com pequenas agonias juvenis facilmente cessadas por colo e bolo quentinho. Mais tarde, diante de percalços mais pesados, reencontramos conforto na convicção de ainda poder contar com nossa maior referência de força.
São incontáveis as brigas que tivemos. Assim como são infinitas as tréguas e afinidades. Foram viagens regadas a discussões de dia e risadas à noite. Foram tantos “nunca mais falo com você” seguidos de “obrigada por tudo”. São milhares de “me deixe, eu não sou criança” acompanhados de “me ajude, eu preciso de você”. O que fica é a agradável certeza de que onde quer que estejamos teremos, uma na outra, apoio e estrutura. Quando terremotos bagunçam a vida, os laços de carinho reorganizam o caos. Há mais de vinte anos, quando eu tinha medo de escuro eu sabia que estava protegida. Hoje ainda sei. Quando nossa mãe é uma grande amiga, o mundo não parece tão assustador.