A Última Tentação: a obra-prima que consagrou Nikos Kazantzákis

A Última Tentação: a obra-prima que consagrou Nikos Kazantzákis

Nikos Kazantzakis começa seu livro mais importante, “A Última Tentação”, com a seguinte e contundente afirmação: “A essência dual de Cristo — o anseio tão humano, tão sublime do homem de alcançar Deus; ou, para ser mais preciso, de voltar a Deus e de com ele se identificar —, essa essência sempre foi para mim um mistério profundo e inescrutável. Essa nostalgia por Deus, ao mesmo tempo tão real e tão insondável, abriu em mim grandes chagas e fez brotar poderosos mananciais”. Isso pode ser considerado real sob diversos pontos de vista, mas o mais interessante é o de um homem que sabe que tudo o que faz é aprendizado. Em que sentido? Esse conhecimento teológico, que supomos ter baseado nas escolas dominicais que frequentamos em nossa infância e nas palestras em quaisquer assembleias religiosas que participamos, de alguma forma, nos conferiu uma crença mais ou menos organizada. Guardadas as devidas proporções e necessidades, tentamos fazer com que ela seja coerente na medida em que a testamos.

Martin Scorsese entendeu a ideia! Mais que isso, fez dela uma imagem em movimento totalmente sincera. Para isso, escolheu um Jesus feio e cercado de ignorantes inseguros que também testam sua crença na medida em que a conhecem. O filme, totalmente fiel à obra de Kazantzakis, captura a ideia essencial do autor. Vamos tentar construir o entendimento com início, meio e fim. Para além de ser um homem, com todos os atributos físicos, desejos e necessidades de um homem, Jesus quer entender o significado das coisas, sobretudo daquelas relacionadas à intimidade da existência. Por íntimo, entendo a função do corpo, da continuidade da espécie e da relação humano-natureza, ideia muito presente, por exemplo, no existencialismo. A relação do humano com a terra, as criaturas e, sobretudo, com o outro, da mesma espécie é, em todos os sentidos, inevitável.

Nikos Kazantzakis
A última Tentação, de Nikos Kazantzákis (Grua Livros, 520 páginas)

Em Física, o observador sempre interage com o objeto observado. Em função disso, eventos ocorrem e modificam, de forma significativa, em alguns ambientes, o meio ou o sistema com o qual interagem. O Jesus Kazantzakiano não é diferente. Mas sobre ele paira uma ideia. Uma vez estabelecido o caos, que parece recorrer sobre os corpos de tempos em tempos, uma mudança é necessária. Um mundo de desgraças só pode ser melhorado por meio da ascensão de um degrau evolutivo, psicologicamente superior. Pelo menos na trama, onde Jesus é o herói que, para além da liberdade que os judeus almejam, entende que a alma é o principal agente da reforma, um estágio avançado precisa ser obtido, mas antes disso, o ente reformador precisa avançar no sentido da transformação. O problema é que o indivíduo escolhido, aquele que entende seu papel, precisa também se desvencilhar do desejo, uma vez que a única maneira que encontra para a transformação é, depois da autorreforma, o sacrifício. Mas como deixar um mundo que se ama tanto? Eis o dilema proposto pelo autor. E, diga-se de passagem, formidável.

Nesse caminho, Jesus se revela um entendedor primitivo de uma teologia inédita. Mesmo porque, às vésperas do advento do cristianismo, a ideia da divindade e da estrutura da criação e do desenvolvimento espiritual ainda é uma incógnita. O filme de Scorsese não tem textos gratuitos ou desnecessários. A construção do homem, essencialmente nietzscheano, passa seguramente pela dúvida. O Jesus, muito bem executado por Willem Dafoe, é um representante do super-homem em construção. É, solidamente, um elo entre a besta e o santo. A segurança na direção, às vezes com pequenos exageros que não incomodam, mas transferem uma aura mística necessária, fantástica e mágica para Jesus, produz momentos de conflito entre empatia e ódio. Tudo isso muito fundamentado na subversão à ideia pré-definida do Jesus bíblico, muito diferente em tudo da versão histórica bem investigada por pesquisadores como, por exemplo, Bart Ehrman, que garante que a ideia de Jesus é a de um profeta do Apocalipse. Coisa que Scorsese também consegue colocar, com respeito ao mito ficcional construído com maestria por Kazantzakis. Essa mistura, elaborada numa forja de sensações pessimistas e intimistas do autor, funciona, pois arremessa o Jesus místico ao nível de um homem, com todas as fragilidades impostas pela efemeridade da carne.

A incerteza sobre as possibilidades para Deus é uma das rotas escolhidas por Scorsese para explorar a evolução compreensiva de Jesus sobre sua função. Que é, segundo sua percepção, a função de todos. Em certa altura, Jesus conversa sobre a divindade, depois de um maravilhoso discurso sobre a morte, elaborado para compor uma cena profundamente inspirada, do velório de um ancião, cuja procissão de acompanhantes do corpo penetra em uma tempestade fúnebre de poeira e tristeza, comoventes. Pouco antes do velho asceta ser enterrado, ele faz uma aparição profética para Jesus, o que faz com que ele seja reconhecido como uma espécie de escolhido pela comunidade de eremitas que se isolaram no deserto para purificação. As questões feitas para Jesus, que necessitam uma interpretação teológica, são feitas para revelar a natureza de Deus. Mas Jesus não tem resposta e questiona a sua própria fidelidade a Deus, com base em seus pensamentos mundanos. Ou seja, há uma construção teológica, uma semente germinando no sentido do entendimento religioso primitivo.

Kazantzakis/Scorsese elevam seu Jesus de um ponto ínfimo na borda da incerteza para um homem que sente sua relação com a natureza sendo ceifada à medida que desmistifica Deus e estrutura uma teologia apocalíptica da autodestruição em nome de uma renovação pragmática de um povo que está em vias de destruição. Pelo menos do ponto de vista da salvação eterna. Ao entrar na mente do autor e retirar seu sentimento mais profundo, Scorsese garante que a frase final do prólogo do livro “A Última Tentação” seja totalmente garantida: “Este livro não é uma biografia; é a confissão de todos os homens que lutam. Ao publicá-lo, estou cumprindo meu dever, o dever de alguém que muito lutou, que foi muito amargurado pela vida e que nutriu muitas esperanças. Tenho certeza de que todos os homens livres que lerem este livro, tão repleto de amor como é, amarão a Cristo mais do que antes, com um amor mais profundo do que antes”. Troque livro por filme e você verá: Scorsese é Kazantzakis.