Mais do que a saudade, o que mata mesmo é a falta de intepretação de texto

Mais do que a saudade, o que mata mesmo é a falta de intepretação de texto

Que saudade do cu de boi. Da voadeira por trás. Da fratura exposta. Da gengiva exposta da falsa-loira que desfilava na frente da torcida organizada. Que saudade danada da desorganização do futebol brasileiro. Do refrigerante fuleiro. Do ingresso falso comprado das mãos de um cambista genuíno. Do grito “Uh, vai morrer” durante a execução do hino. Ai que saudade que eu sinto da guerra de rojões no meio da fuça. Da buça sorridente da morena do reco-reco. Do cheiro de baseado no vuco-vuco da batucada. Da pancadaria generalizada. Do spray de pimenta. Do espetinho-de-gato ao ponto. Que tanto de saudade que eu tenho de um tempo em que estádio de futebol não era chamado de arena. Dava para jogar a porcaria do radinho no campo sem se preocupar com o preço da pilha. Que saudade da pilha de nervos dos atletas profissionais nas quatro linhas: a cusparada na cara, o dedo no rabo, o coração no bico da chuteira. Injúria racial era do jogo. Olha que ainda morro de saudade de voltar os ponteiros do relógio só para urinar novamente na pia do sanatório masculino, ou melhor, do sanitário masculino. E me embriagar de chope. E jogar um copo de urina na cabeça do povão apinhado lá embaixo. Eita, saudade de uma baixaria! De pular a catraca. De conversar apenas o indispensável para insultar o motorista. De encoxar bundas desprevenidas dentro daquela fedegosa lata-de-sardinha. Que vontade que eu tinha de levar de novo o meu filho homem ao estádio. De ensinar para ele o bê-á-bá dos xingamentos. Que saudade daqueles momentos de estupidez e de emoção inconteste. Dos testes para cardíacos. De ocupar o espaço destinado aos cadeirantes para atirar destroços de cadeiras no gramado. Que saudade das mãos contra a parede. Dos sopapos no pé-de-ouvido. Do cassetete no meio dos ovos. De ovacionar o artilheiro do time. De registrar um be-ó. Oh saudade do torcedor-raiz que vivia o futebol como se o futebol fosse uma espécie de religião: um espetáculo de fúria, de ilusão e de fanatismo. Que falta que eu sinto das frustrações resolvidas no braço num período da história em que os homens eram mais homens. Mulher apitando jogo é o fim do mundo. Que saudade de chamar o juiz de veado. De enxotar o velhote do lado. De enfrentar os perrengues contra a tropa-de-choque. Do cheque preenchido às pressas, de soslaio, para livrar de um flagrante. Da fragorosa falta sobre o atacante, dentro da grande área, que o árbitro — aquele filho-da-súmula — fingiu não ter visto. Que falta nos faz a máfia das loterias. A fraude nas bilheterias. A bola chutada para o mato quando o jogo era de campeonato. Faz tempo que a seleção brasileira não ganha um título mundial. Também pudera. Queria ver de novo aquele futebol moleque nos pés dos craques milionários. O VAR está matando o futebol. O fair play também. Que saudade do overlapping. Da lapada do sargento. Da fumaça e da asfixia. Da gloriosa invasão de campo. Da bandeira do time do coração sobre o esquife. Tudo agora é nostalgia. O saudosismo me invade o peito. O jeito é escrever, mas… Cuidado, leitores incautos! Nada é o que parece. Esta crônica contém ironia. E doses cavalares de sarcasmo. Não custa alertar: mais do que a saudade, o que mata mesmo é a falta de interpretação de texto. Que fase…