Vale a pena ficar em casa para assistir: do mesmo diretor de Amélie Poulain, comédia francesa da Netflix é uma delícia Divulgação / Netflix

Vale a pena ficar em casa para assistir: do mesmo diretor de Amélie Poulain, comédia francesa da Netflix é uma delícia

Parece que o cinema frequentemente nos convida a refletir sobre os meandros da tecnologia. De tempos em tempos, surge uma obra cinematográfica que, embora explore um tema já debatido, torna-se cada vez mais relevante na vida cotidiana. Imagine se as máquinas, que têm servido à humanidade de forma consistente desde pelo menos 1698, quando o engenheiro militar inglês Thomas Savery (1650-1715) aprimorou o mecanismo desenvolvido rudimentarmente pelo matemático grego Heron de Alexandria (10-80) criando a máquina a vapor, resolvessem exigir uma compensação e, pior, fossem além, aprisionando-nos em nossas próprias casas, submetendo-nos a condições extremas de calor ou frio, restringindo nosso acesso a alimentos, tudo com o objetivo de dominar o mundo? Como poderíamos enfrentar adversários muito mais fortes, rápidos, dinâmicos e inteligentes, capazes de resolver milhares de problemas com facilidade, dotados de força suficiente para derrubar alguém com um movimento preciso, e, acima de tudo, tão sábios quanto o mais erudito dos humanos, com a vantagem de nunca envelhecerem? Será que a Revolução Industrial, a era digital e a vida cibernética valeram a pena?

Essas e muitas outras questões são levantadas em “Bigbug”, uma comédia de ficção científica dirigida pelo francês Jean-Pierre Jeunet, que faz o público refletir sobre os perigos do progresso digital incessante, um caminho sem volta que exige parâmetros claros. O roteiro de Jeunet e Guillaume Laurent oferece uma releitura humorística e absurda do argumento de Alex Garland em “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), focando no humor e em situações farsescas que beiram o escatológico, enquanto Garland enfatiza a tensão do tema central, criando uma das melhores tramas do gênero no cinema contemporâneo. Em “Bigbug”, ninguém pretende resolver uma questão tão filosoficamente vasta, e é essa falta de compromisso com a lógica que faz a narrativa se destacar.

Conhecido pela comédia romântica “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (2001), Jeunet apresenta uma série de personagens em um cenário claustrofóbico, mas colorido pela fotografia de Thomas Hardmeier. A história começa com Alice, uma dona de casa amarga interpretada por Elsa Zylberstein. Recém-separada de Victor, vivido por Youssef Hajdi, que está envolvido com Jennifer, a secretária interpretada por Claire Chust, Alice lida com a indiferença da filha Nina, de Marysole Fertard, adotando uma obsessão quase paranoica pela casa. Este é o ponto de partida para a introdução de outros personagens como Einstein, um robô inteligente dublado por André Dussollier, e os androides Monique e Greg, interpretados por Claude Perron e Alban Lenoir, respectivamente, além de Yonyx, um híbrido com corpo metálico e cabeça humana interpretado por François Levantal, e a mascote de Nina.

Jeunet articula de forma convincente o episódio em que todos esses personagens se reúnem na sala de Alice, junto com Max, o candidato a novo parceiro de Alice, interpretado por Stéphane De Goodt; Léo, seu filho, interpretado por Hélie Thonnat; e Françoise, a vizinha intrometida vivida por Isabelle Nanty. Utilizando enquadramentos pouco usuais, Jeunet destaca a interação entre os atores sem comprometer os novos arcos dramáticos que vão se desenvolvendo, técnica muito presente nos trabalhos de Robert Zemeckis, como “O Voo” (2012) e “Forrest Gump: O Contador de Histórias” (1994). Quando Victor e Jennifer tentam sair de casa para pegar um voo rumo a um novo começo, o sistema de segurança comandado por Yonyx bloqueia todas as portas devido a um risco externo, determinando como os humanos devem se comportar.

Jeunet enriquece a premissa ao adicionar outros arcos dramáticos, evidenciando ressentimentos e relações inconfessáveis entre os humanos e os dispositivos de inteligência artificial ao seu redor. Os personagens humanos em “Bigbug” revelam uma face ambígua, enquanto as máquinas, irritantemente racionais, variam entre a vilania de Yonyx, a ingenuidade de Einstein e a gentileza de Greg. O plano de Victor para libertá-los é a grande reviravolta da trama, momento em que o diretor nos mostra que há autômatos mais sensíveis que muitas pessoas, e humanos bem mais cruéis que qualquer máquina.


Filme: Bigbug
Direção: Jean-Pierre Jeunet
Ano: 2022
Gêneros: Ficção científica/Comédia
Nota: 8/10