Que futuro pode ter uma criança cujo pai a troca por seis cervejas? Depende. Se for alguém com a determinação de Harleen Quinzel, a protagonista de “Aves de Rapina — Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa”, essa menina pode, mesmo depois de mandada para um orfanato como o Santa Bernardette, ir à faculdade de medicina e tornar-se psiquiatra, com doutorado e tudo, e aos poucos chegar à conclusão de que seus limites e sua vontade de os superar vêm de sua própria força de vontade e da falta dela, até que um verdadeiro baque a leva ao chão.
Cathy Yan ilumina a alma tenebrosa dessa mulher brilhante, que parece querer da vida uma coisa tão singela e perigosa quanto o amor do homem tresloucado que a abandona, rejeição que manifesta-se em seu espírito sob formas antagônicas, mas que se complementam, fortalecendo um sentimento autodestrutivo ao que passo que também a empurra para uma missão nobre. O roteiro de Paul Dini, Christina Hodson e Bruce Timm elabora as contradições de Harleen e um grupo de mulheres igualmente empoderadas, que chama de Aves de Rapina, cada qual com seus desapontamentos e, claro, seus respectivos pontos de virada.
Ser mulher num mundo pensado e construído para homens não deve ser fácil. Admita-se ou não, pulsa em alguma parte recôndita da mente de cada um de nós, mesmo em se tratando do mais liberal dos mortais, o pensamento, contra o qual quase todos lutamos, de classificar uma mulher de acordo com o comprimento da saia que veste, a cor do batom que usa nos lábios, estar ou não acompanhada em determinados lugares, especialmente depois de certas horas.
Até aí, drama nenhum, considerando-se a natureza patriarcalista, sexista, machista das sociedades ao redor do mundo, sobretudo a brasileira, e se se consegue empreender um combate exitoso ao monstro do preconceito mais atrasado que habita nosso inconsciente. Uma das questões é saber até que ponto essa fera é capaz de se manter silenciada e sob controle, guardando apenas para si suas opiniões e possíveis comentários preconceituosos. A outra é tentar adivinhar onde estariam as pessoas que não veem nenhum problema em preservar seus piores instintos vivos e ferozes.
Fica difícil lembrar de Margot Robbie na pele da doidinha mais adorável da DC Comics depois do sucesso avassalador do enfaroso “Barbie” (2023), embora o trabalho de Greta Gerwig não deixe de ser um epílogo involuntário do longa de três anos antes. Robbie dá um pouco mais de cor além dos onipresentes cinquenta tons de rosa do longa de Gerwig e das tintas de morte de “Coringa” (2019) e “Coringa: Delírio a Dois” (2024), ambos de Todd Phillips. A paixão de Harleen pelo palhaço maldito permeia todo ofilme, mas qualquer um com alguma boa vontade entende que o enredo não trata disso. Demora um pouco, mas quando Harleen Quinzel se rebela com o destino que o Máscara Negra de Ewan McGregor quer dar a Cassandra Cain, a garota-problema interpretada pela talentosa Ella Jay Basco, o jogo vira e ela mostra quem é a rainha daquela selva. Sem macho alfa nenhum para dar pitaco.
Filme: Aves de Rapina — Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa
Direção: Cathy Yan
Ano: 2020
Gêneros: Ação/Comédia
Nota: 8/10