Quem poderia dizer que, quase duzentos anos depois de sua morte, Jane Austen (1775-1817) cairia no gosto popular, em comédias românticas adolescentes que Hollywood molda a seu talante até chegar aonde está aquele público? Percebe-se logo que, na verdade, “As Patricinhas de Beverly Hills” passa longe do que Austen de fato quis dizer em “Emma” (1815), a história de uma aristocrata jovem e leviana, que descobre uma aptidão que a faz especial em meio às insignificâncias da elite inglesa do príncipio do século 19.
Talvez dando-se conta de que, já padecendo dos sintomas do mal de Addison, doença autoimune a respeito da qual nada se sabia dois séculos atrás e que viria a matá-la dois anos depois, em 18 de julho de 1817, aos 42 anos, a escritora resolve dizer verdades urgentes (e um tanto fesceninas) a respeito da sociedade de seu tempo, algo que fazia como ninguém, e o faz pela boca da personagem-título, que no longa de Amy Heckerling ganha o nome de Cher Horowitz. Existe boa dose de oportunismo no trabalho de Heckerling, que a partir do mote ditado por Austen leva a narrativa por suas próprias divagações, mas há que se reconhecer que embora sequer emule a superioridade estilística e o apuro semântico do texto da britânica “As Patricinhas de Beverly Hills” tem lá sua graça, justamente por absorver o espírito revolucionário de uma mocinha cheia de contradições.
Cher tem um quê de sua xará famosa: é rica, bela, excêntrica e pensa que os homens vieram ao mundo para servi-la. Ela é filha de Melvin Horowitz, um dos melhores advogados da Costa Oeste vivido por Dan Hedaya, que não permite que seus inúmeros casos envolvendo transações milionárias interfiram na relação com a pimpolha, que vê mesmo como uma eterna menina grande vestida de Louis Vuitton e Prada e que precisa de seu constante zelo. Nessa conta entra o meio-irmão, Josh, de Paul Rudd, e a partir daí a diretora-roteirista passa a descrever o cotidiano da anti-heroína de Alicia Silverstone, bem-entrosada em meio a nerds, maconheiros, futuros rei e rainha do baile, enfim, a garota mais popular do colégio.
Dionne Davenport, a melhor amiga, é sua versão negra, dotada de um temperamento menos diplomático, e Stacey Dash encarna junto com Silverstone a natureza anárquica das produções dos 1980 e 1990 que hoje não se acha mais tão facilmente. Esse é o gancho de que Heckerling se vale para levar a narrativa para seu eixo central, movendo-se em torno da necessidade de fazer com que Wendell Hall e Toby Geist, os professores mais rigorosos (e solitários) da escola interpretados por Wallace Shawn e Twink Caplan, se apaixonem e deixem a garotada ainda mais solta. Ela consegue, ratifica seu prestígio e sente-se no direito de gozar seus merecidos privilégios. Até que a iminência de uma tarefa quase tão desafiadora a sacode da mais uma vez.
Tai Frasier, a novata desengonçada e quase maltrapilha para os padrões de Beverly Hills, claro, precisa de uns toques da patricinha. Ainda que o filme caia refém de um batalhão de clichês e perca energia do segundo ato em diante, a afinidade entre a Silverstone e Brittany Murphy (1977-2009) guarda boas surpresas, mormente para quem se já cansou da correção política que infesta até o que é pensado para fustigar os costumes e chocar a burguesia. Já não se fazem mais aspirantes a dondocas como antigamente, nem nos arredores de Los Angeles nem lugar nenhum nesse tempo insano.
Filme: As Patricinhas de Beverly Hills
Direção: Amy Heckerling
Ano: 1995
Gêneros: Comédia/Romance
Nota: 8/10