Muito menos racional do que aquele que orienta sua vida pelos tantos expedientes que só podem degringolar em insânia e maldade é quem espera algum resquício de sensatez em gente que entende a vida como um jogo sem regras, no qual tudo pode ser feito para se chegar ao topo. Nascemos todos inexoravelmente mergulhados em questões muito nossas, cujo sentido revela-se apenas para nós mesmos — e não sem antes nos atormentar pelo tempo necessário para que a vida nos presenteie com a centelha quase mágica do discernimento, atalho que, de quando em quando, o espírito toma em busca da razão —, mantidas como um raro tesouro a distância dos olhares morbidamente curiosos de quem nos odeia e da perplexidade muda e inconformada das pessoas que nos querem bem. Nenhum cineasta é tão persuasivo ao venerar o absurdo quanto Jordan Peele, e em “Não! Não Olhe!” o diretor novamente ousa dizer verdades urgentes do jeito mais confuso, até que minutos depois aquele emaranhado de imagens hórridas do roteiro, como se saídas de um pesadelo longo, tomam corpo e vão fazendo sentido.
Ter lugar no mundo implica renúncias. Busca-se desesperadamente por alguma beleza capaz de justificar o sofrimento todo que é a vida, mas nem sempre se entende que a vida transforma em beleza muito do que enxergamos como outra coisa qualquer. Mesmo o ridículo, o patético, o dramático da vida tem tanta beleza quanto o romance mais tolamente sereno, com a ressalva de que romance serenos podem nunca nos fazer ter o gosto do devaneio que aparta as nossas das vidas das demais criaturas. Todos padecemos dos males de que só nós mesmos temos a dimensão, e nem sempre é possível escalar a muralha de desafios que nos separa dos outros sofredores, todos ligados por um fastio moral que nos humilha e nos absolve.
Peele mistura o universo da arte com um rancho onde se criam cavalos usados para gravações para falar do medo do desconhecido que habita o mais corajoso sos seres humanos. Peele enxerga sua arte como uma ponte — do homem para consigo mesmo, para com o outro, para com a existência —, ao mesmo tempo que reflete o que se passa na sociedade, catalisa essa tendência e subverte o processo na medida em que se depara com as carências da história. “Não! Não Olhe!” consegue ser ainda mais incisivo em suas alegorias a respeito das eternas dificuldades do existir que “Nós” (2019) ou “Corra!” (2017), no qual Daniel Kaluuya também deu vida a um homem atordoado, que parece sempre longe demais de seus objetivos. Aqui, Otis Haywood Jr., seu personagem, junta-se à irmã, Emerald, de Keke Palmer, num propósito frustrado que Peele só revela no encerramento, como é de seu costume.
Filme: Não! Não Olhe!
Direção: Jordan Peele
Ano: 2022
Gêneros: Terror/Ficção científica/Mistério
Nota: 8/10