Céline Dion não pode se emocionar. A grande descarga de emoções a que seu corpo é submetido durante uma apresentação, por exemplo, é um dos gatilhos da síndrome da pessoa rígida, distúrbio neurológico definido por espasmos que retesam os músculos do tronco, braços e pernas. Em sendo assim, vai se passar um bom tempo até que a canadense de Charlemagne, Québec, no leste do país, dona da impressionante marca de 250 milhões de álbuns vendidos em todo o mundo, encare uma turnê e volte aos palcos.
Reaprendendo a viver, ainda se conformando com essa nova e dura realidade, a cantora, perfilada por Irene Taylor em seus detalhes mais lúgubres em “I Am: Céline Dion”, decide que a hora é de escancarar uma intimidade que o público não vê e da qual decerto gostaria de participar, uns por compaixão, outros pela mórbida e tão humana urgência de consolar-se com a dor de quem julgavam imune a essas comezinhas tristezas. Taylor penetra com cuidado nesse gênero que se afirma como um veio mais e mais caudaloso, o das biografias imersivas de estrelas do pop internacional, e consegue imagens ora assustadoras, ora ternas, que inspiram pena, incredulidade, admiração e o sentimento de que o destino é mesmo uma fera rancorosa a espreitar-nos a cada lance, e o sucesso muitas vezes exige a alma e o corpo de que ousa conquistá-lo.
Antes de “I Am”, Dion havia sido objeto do meloso “Aline — A Voz do Amor” (2020), de Valérie Lemercier, mas é aqui onde de fato está sua essência. A diretora-roteirista abre seu filme com sua biografada num divã branco, se contorcendo de dor, cena que só ficou por insistência da própria protagonista, que aparece muitos quilos abaixo de sua já macérrima silhueta, com placas avermelhadas pelo rosto macilento e, vulnerável como um bebê órfão, implora por ajuda.
Diferentemente de trabalhos a exemplo de “Gaga Chromatica Ball” (2024), no qual Lady Gaga dirige-se e mostra os bastidores de seu novo espetáculo, o documentário de Taylor aproxima-se mais de Erin Lee Carr e seu “Britney Vs. Spears” (2021), com a diferença de que Dion não teve a menor chance de escapar à tragédia que de repente se abateu sobre sua vida. “I Am” contrabalança a acrimônia da decrepitude física da diva abusando das imagens em que ela aparece tomando o café da manhã ao lado de Nelson, um de seus três filhos com o empresário e músico René Angélil (1942-2016), gêmeo bivitelino de Eddy, irmãos de René-Charles, o mais velho, enquanto o garoto permanece vidrado num jogo no computador. Os registros contemporâneos de Taylor amalgamam-se aos inúmeros VHSs da família, saborosos, em que Dion escolhe mocassins discretos entre seus mais de doze mil pares de sapatos de grife para sair da maternidade depois de dar à luz os caçulas, em 23 de outubro de 2010.
A ausência compulsória de Angélil, com quem foi casada por quase trinta anos, coincide com o agravamento de sua doença rara, diagnosticada de maneira tardia e que lhe consome dinheiro, tempo, ânimo e a carreira, que tem-lhe feito falta. Com uma fortuna estimada em oitocentos milhões de dólares, cerca de 4,5 bilhões e meio de reais, Dion, a filha mais nova entre catorze irmãos, de quem herdava roupas e brinquedos, não corre o risco de tornar a ser pobre. Como se ouve em “My Heart Will Go On” (1997), seu hit com James Horner (1953-2015), a música-tema de “Titanic” (1997), de James Cameron, a distância não se separa um verdadeiro amor. Mas Céline Dion luta por sua vida.
Filme: I Am: Céline Dion
Direção: Irene Taylor
Ano: 2024
Gêneros: Documentário/Drama/Musical
Nota: 9/10